quinta-feira, outubro 18, 2018

Vera Duarte e a 'Reinvenção do Mar'



0.  Desejo agradecer à Escritora Vera Duarte, minha querida Amiga de há muitos anos, pela gentil, na verdade generosa lembrança de me associar a esta sessão de apresentação do seu mais recente livro, ‘A Reinvenção do Mar’. É para mim motivo de muita honra e alegria o poder estar aqui, agora.
Igualmente, felicito a ‘Rosa de Porcelana’, aqui dignamente representada pelo Jornalista António Sérgio Barbosa, por mais este belíssimo resultado do trabalho de enriquecimento cultural que vem levando a cabo, com entusiasmo, rigor e bom gosto. Um abraço especial à Márcia Souto e ao Filinto Correia e Silva. 
A meu ver, é importante e é altamente simbólico que a apresentação deste livro esteja a acontecer nas vésperas do 5 de Julho - Dia da Independência Nacional. 

1. Tentarei de seguida partilhar convosco as minhas notas de leitura de tão importante obra. Na verdade, uma obra que se lê com prazer. Um livro de paixões, tão pleno deles que é justamente no agridoce das inquietações ou do desassossego induzido que nos recorda, nos afirma o lugar da Poesia. Mas mais do que isso: a importância de ler poesia. Senti-la. Decifrá-la. Absorvê-la. Adoptá-la. Aceitar o império dela. É de sentidos a poesia de Vera Duarte, intensamente de sentidos. Dela devemos acercar-nos com inteira disponibilidade dos sentidos. Disponíveis para os perfumes, as cores, o azul, o verde, a chuva, a terra, suor, milho, pão, mãos, beijo, morte, sortilégio... Disponíveis, em suma, para a música que percorre este livro ou dele resulta. Aliás, há 25 anos, Ondina Ferreira, no seu prefácio ao primeiro livro de Vera Duarte, pontualizava o seguinte: “Coem-se desses versos a deliciosa sensação alada e bela, pela conjugação do ritmo, do movimento, das metáforas e das síncopes; da dança das palavras a configurar aquilo que para J. Luís Borges é caro: ‘Toda a arte conduz à música’ ”.    

2.     A poesia de Vera Duarte busca a leitura e a compreensão deste nosso país e das pessoas que o fazem, mas também do mundo para lá da linha do horizonte, sendo, justamente por isso, uma poesia profundamente sintonizada com a universalidade estético-literária. Nela estão, com efeito, temas-residentes da poesia universal: a vida, a morte, a felicidade, o sofrimento, a beleza... Ou seja, a poesia e as suas indagações permanentes, o desassossego que se renova, os impulsos interiores e exteriores que, como pretendia Goethe, conduzem ao poema.
Citemos Vera Duarte:

As pulseiras doiradas que me pendem dos pulsos magoam-me. Martirizam-me. Não as quero. Porquê usá-las se é também possível a vida sem elas? Ou não será a felicidade a razão da existência? Porque apontarei à forca o homem que por séculos jazeu no banco da praça? Não lhe limpei o mijo nem mais. E se a sua alma não resiste? Ficarei eu amarrada aos remorsos e sobressaltada por pesadelos vivos? Poderei ser feliz sozinha?...
Grito pelos montes e vales. Acaricio a terra agreste desta paisagem órfã. Quereria saber o segredo do sorriso e descobrir o mistério da felicidade.” (p.29)

Continuemos, um pouco mais, com Vera Duarte:
Falo-lhes.
Falo de Deus e do nada. Do caos e do recomeço. De Abel e eternamente Caim. De Romeu e Julieta e a negação do amor. Sobretudo falo-lhes de Antígona.” (p. 69)

Na verdade, julgo que importa reparar que Vera Duarte entende a sua poesia como uma ponte para o mundo mais largo. Ela recusa o confinamento.

Sem a palavra
A ilha não existe

Sem a ilha
Não existe o poema

Sem o poema
Ilha é exílio” (p.108)

E é assim que Vera Duarte fala-nos de Albert Camus como nos fala de Florbela Espanca, na mesmíssima moeda.

Mas, qual Florbela, sinto que a minha sede de infinito é
maior do que eu, do que tudo, e por ela me ofereço” (p. 69)

Nessa sua procura do mundo, do mais largo, ou melhor, nesse procurar trazer o mundo para dentro da ilha, Vera Duarte percorre os largos caminhos da intertextualidade. E fá-lo com afoiteza, com orgulho também e com um carinho que não se esconde. Veja-se, por exemplo, o subtil jogo das “dedicatórias”. Não são meras expressões de afecto ou reconhecimento; são mais do que isso: são remissões para Autores e conteúdos poéticos, literários, estéticos, filosóficos também que se afirmaram e de algum modo, em algum momento disseram algo à Vera Duarte. E ainda dizem, seguramente.

Sentar-nos-emos todos 
               Na roda dos poetas
Mais o Arthur, a Sofia
O Rosa, o nosso Corsino
Tchicaya, Senghor e Cesaire” (p. 110)

Mas muitos outros igualmente estão presentes ao longo do livro. De Eugénio de Andrade a Mário Fonseca, de Luandino a Oswaldo Osório e a Dina Salústio. É na companhia de Manuel Alegre que Vera Duarte nos fala de Abril e dos “cravos à multidão em júbilo” (p. 66); é na vénia a António Aurélio Gonçalves que Vera Duarte traz-nos a mulher-lutadora que todos os dias inventa, melhor reinventa “o sustento para os inúmeros filhos de pai incógnito” (p. 64). Poderia a Autora cuidar das crianças sem homenagear Jorge Barbosa? (p. 62) Poderia ela referir-se à chuva, ou ao drama da falta dela, sem dirigir um aceno a Manuel Lopes? (p. 65) Poderia ela transfigurar o velho dilema do ‘querer ficar e ter de partir’ sem antes sentar-se à soleira da porta de Baltasar Lopes?

No seu quotidiano de miséria, dormindo no chão
húmido de terra batida, coberto de serapilheira e comendo
os restos repartidos, ele não compreende bem o que é essa
riqueza que se lhe acena, para além desse mar e desse céu
infinitamente azul.
Aguarda contudo com ânsia o dia da partida.
A viagem. O vapor.” (p. 63)

Enfim... exemplos apenas.
Na verdade, e a concluir este tópico, Vera Duarte, na sua escrita, insiste em falar de “perfumes estivais” (p. 32). Julgo que é também com esse estatuto de “perfume estival” que ela nos traz esse buquet de Autores e Autoras, ‘gente cunxide’ para quem ela convoca o nosso carinho. É de caso pensado que utilizo a expressão em crioulo, pois que na equivalente em português não encontro tão funda ideia de afecto na proximidade, no convívio, na adopção.

3.  Um aspecto que não pode deixar de ser sublinhado é o da constância, a insistência!, com que Vera Duarte traz a prosa para a sua poesia. A prosa poética. A versiprosa. Porventura, e se bem ajuizo, isso ocorre nos momentos em que a autora sente como mais acertado ou verosímil o recurso a um traço mais alongado para exprimir uma particular reflexão ou inquietação. É o caso dos seus “exercícios poéticos”, já do tempo do primeiro livro, “Amanhã Amadrugada”, de 1993, mas é também o caso de vários outros textos presentes no livro hoje apresentado. Sobre este aspecto em concreto, veja-se a deliciosa leitura de Fátima Bettencourt que vem recordada na página 170 desta obra.

4. Antes de levar mais além esta minha conversa, quero sublinhar duas evidências. 
A primeira é esta: não é possível falar da Literatura cabo-verdiana sem referir o nome de Vera Duarte. Não apenas porque a sua presença já vem de longe, mas sobretudo porque essa presença se tem traduzido num contributo constante e de qualidade. Na verdade, uma Autora que soube construir o seu caminho e afirmar-se com a sua voz própria, com autonomia e autenticidade. Como bem ajuíza o Dr. Arnaldo França, “Vera Duarte é um dos pilares fundamentais da literatura cabo-verdiana”. 
A meu ver, importa sublinhar que Vera Duarte enquadra-se numa linhagem, num combate, já antigo, pela afirmação e o enriquecimento da Literatura cabo-verdiana. Em tal combate, as mulheres têm estado em pé de igualdade com os homens. Lá nas origens já havia Antónia Gertrudes Pusich. De lá para cá, podemos referir Autoras da craveira de Maria Helena Spencer, Orlanda Amarilis, Yolanda Morazzo, Maria Margarida Mascarenhas, Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Ondina Ferreira, Hermínia Curado Ferreira, Leopoldina Barreto, Ivone Ramos, Luísa Queirós, Carlota de Barros... Felizmente, novos nomes vão surgindo e vão construindo o seu caminho. Nestas ilhas sempre houve e continua a haver uma literatura de qualidade. Nisso há, igual e por inteiro, o quinhão das mulheres Escritoras. Porventura faz falta falar mais desse quinhão. Quem, hoje em dia, lê os belíssimos contos de Maria Margarida Mascarenhas? Estará devidamente conhecido o exemplo de Maria Helena Spencer?
Ou seja, mais do que repescar debates que têm tido pertinência noutras latitudes, como o de saber se existe uma escrita “no feminino”, parece-me mais produtivo, no caso de Cabo Verde, enaltecer o contributo das Escritoras cabo-verdianas (repito: em pé de igualdade), pondo em destaque o que de inovador exista nesse contributo, designadamente em termos de rasgo temático ou estético. Da qualidade literária, afinal. Não será isto o essencial?
Aliás, a própria Vera Duarte, no seu discurso proferido, no dia 13 de agosto de 2001, no Reino de Marrocos, concretamente na cidade das Artes, Assilah, na cerimónia em que lhe foi entregue o Prémio Tchicaya U Tam’si de Poesia Africana, defendeu que a chegada das mulheres à poesia, entenda-se à literatura, tem de ser um sinal de liberdade. “un signe de liberté” - assim é que está no texto original. Sempre na linha do essencial do combate, mais dizia Vera Duarte nesse seu discurso o seguinte: “Enquanto jurista e activista dos direitos humanos, penso que, para além do Direito, devo utilizar o meu gosto pela escrita para transmitir a mensagem de igualdade, de dignidade e de respeito que desejo para as mulheres do meu país, da África e do mundo inteiro”. Importante lembrar que nessa intervenção Vera Duarte presta homenagem a Arthur Rimbaud (o tal Arthur...) e ao seu corajoso e pioneiro pronunciamento contra a servidão da mulher perante o homem, defendendo o direito dela à liberdade e a ser poeta: ”elle aussi será poète”.
A segunda evidência a referir é a seguinte: estamos perante uma Escritora que é, antes de mais, uma cidadã a corpo inteiro, no espaço do seu próprio país, obviamente, mas cidadã do mundo também, o que já não é tão óbvio nos tempos que correm. Viaja-se cada vez mais e de forma cada vez mais rápida, é certo; sabe-se mais, quase instantaneamente, do que vai acontecendo um pouco por todo o lado, de norte a sul, todavia é cada vez menor a grandeza de alma para abraçar o mundo na sua diversidade, nos seus dramas, no seu potencial de esperança e de progresso. Vera Duarte é essa cidadã de alma grande e sensibilidade apurada, diuturnamente comprometida com causas, desde logo aquelas que, umas mais persistentes do que outras, têm que ver com a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a luta pelo desenvolvimento para todos.
Em Vera Duarte sente-se uma recusa visceral, quase epidérmica, da injustiça, das desigualdades. Sobretudo, a recusa do conformismo.

Acordemos camaradas
as chuvas de outubro não existem!
O que existe 
é o suor cansado
dos homens que querem

O que existe 
é a busca constante
do pão que abundante virá” (p. 38)

Ou então, mais adiante, num outro poema, ou melhor, na prece ao “habitante do século vinte e um”:

Não pode haver um inocente
Quando a vida grita fome
E pede socorro
E os homens
        São cadáveres ambulantes
                   À espera de sepultura

Não pode haver um inocente
Quando a maior esperança
For o abrigo certo
De uma cova partilhada” (p. 86)

Estamos, com efeito, perante uma Autora que conclama para um mundo melhor. “Hoje sonhei com o mundo ao avesso” (p. 67) Fala-nos também de um “Sahel redimido” (p. 42) ao mesmo tempo que se inquieta com paradoxos muito nossos: “Se Cheik Anta Diop tivesse morrido ontem sabê-lo-ia hoje?” (p. 23)
Referindo-se aos dramas que dilaceram o continente africano, Vera Duarte enumera-os, nomeia-os como sete cabeças que têm de cair, têm de ser decepadas (p. 89), fazendo-nos recordar da tenebrosa Hidra da mitologia clássica. E ela vai-nos advertindo:

É preciso uma fé
Que mova montanhas
E um holocausto redentor
Que devolva os homens
Aos ideais” (p. 94)

Igualmente, importa reparar nas preocupações mais globais. Na sua prece pelos “excluídos da terra”, Vera Duarte refere-se a “vozes sem eco” e é veemente na enunciação da “cólera”, da “revolta”, do “imenso abandono”, do “sofrimento antigo e indizível” (p. 97)

Faminto exangue
Doente
Dilacerado
Eu grito

Mas a voz não sai
O grito não soa
A minha voz não tem eco” (p. 98)

Ao menos esteticamente, isto traz-nos à memória Ungaretti e o seu “sono stanco di urlare senza vocce”...

De resto, é importante sublinhar que as preocupações de cidadania ou de clarividência cívica estão presentes ao longo da produção literária de Vera Duarte. São constantes, são-lhe co-naturais. Ou seja, uma escrita devedora de uma ética da liberdade e da dignidade – sem fronteiras, sem condições. De modo paradigmático e intenso, disso dá-nos conta esse poema-torrencial que é “Ortodoxias em desagregação – Poema Manifesto” justamente dedicado a Mário Fonseca (páginas 50 e seguintes).

Nas minhas veias 
corre um sangue missionário
no meu sangue
corre uma revolução
que não perdeu sentido de ser” (p. 54)

Na verdade, na verdade já em 1976 Vera Duarte disse-nos ao que vinha, precisamente em versos que estão naquela que é a primeira antologia de poetas cabo-verdianos publicada no Cabo Verde independente. Tais versos vêm recuperados no livro hoje apresentado (p. 82). Vejamos:

Na essência das coisas
A sensibilidade do poeta

A terra fez-me sensível
E penetrei com desespero
No fundo da miséria dos homens

Agora que sei tudo
Di-lo-ei a todos” 

Penso que nestes versos está enunciada a ars poetica da Vera Duarte. “Na essência das coisas/ A sensibilidade do poeta”. Porventura com a mesma translucidez com que Sophia enaltece a essencialidade na ânfora numa loja dos barros em Lagos...  

5.  Uma pergunta que se impõe é a seguinte: porquê este livro? O que é que motiva esta antologia poética? Naturalmente que nos vem à memória Jorge Luís Borges e a ‘nova antologia pessoal’. Também neste caso presente, é a própria Autora quem organiza este livro, para tanto revisitando toda a sua obra anteriormente produzida, selecionando, filtrando, compondo um novo livro.  E a verdade é que este novo livro é um caso de coerência. Coerência interna, naturalmente, mas sobretudo, e é isto que importa aqui sublinhar, coerência num já longo percurso de criação poética. Um livro de decantação, parece-me, e de reafirmação para novos voos, novos ciclos. Este livro espelha uma Autora constante e inteira nas suas convicções, nos seus compromissos, nos seus combates, na sua Arte Poética. Sobretudo, uma Autora inabalável na sua crença nas madrugadas enquanto portadoras de esperança num “tempo novo e redimido”. Como bem observa Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte é crente numa “antropologia geral optimista”.

“............................ Não
chove, não chove, não chove. Felizmente que da cabeça dos 
homens saíram ideias sábias e mãos hábeis inverteram o
destino das ilhas. As chuvas não vieram mas plantaram-se
árvores, rasgaram-se estradas, construíram-se aeroportos.
Lamenta-se ainda a sorte, a morte e também a fome de
uns, mas as coisas vão melhorar.” (p. 28)

6.    Nestas minhas notas de leitura, devo ainda fazer referência a duas dimensões essenciais, na verdade fundacionais na ou da poesia de Vera Duarte. Antes de mais, as Mulheres. Ou a Mulher. Nesta poesia ou através dela, trava-se um combate constante pela liberdade da Mulher, a sua dignidade, o seu direito inalienável a desabrochar como ser humano e a crescer nas aras da cidadania plena. Incluindo, note-se, o direito à plenitude da vida afectiva.

E dentro de mim, censuradas e sedutoras, sucedem-se
as imagens proibidas e as sensações interditas.
Sublimar é a palavra d’ordem. O amor e a paixão, a 
libido e o prazer. No altar dos valores supremos. Sublimar
aqui e agora e manter estóica e estupidamente secretos os 
diálogos que comigo mantenho contigo.
Convenho-me que a vida é feita de ironias.” (p. 26)

Vera Duarte insurge-se contra a coisificação da Mulher, as situações degradantes no dia a dia dela, como sejam a violência moral, física, sexual.

Tecidos da mesma textura de excesso o amor e a morte 
parecem caminhar em paralelo. Indago inquieta se o amor
pode ser morte e aniquilamento. Confusa me pergunto se
o amor rima com escravidão, submissão, humilhação.” (p. 70)

Reparemos neste outro drama, convergente, e que é referido da seguinte forma:

Entretanto, sobre a minha secretária, do montão
de papéis desarrumados, sobressai a carta da mulher que
pede se embargue a partida do velho que lhe desflorou a
filha de onze anos em troca de uma mão cheia de bolos.” (p. 24)

7.   A outra dimensão a que faço menção, ainda que de forma sincopada, é a do Amor. Porventura a dimensão que Vera Duarte mais aprofundadamente trabalha na sua poesia. O amor, “essa razão tirana / sempre senhora de mim” (p. 47). Num assumido desdobramento da sua liberdade plena enquanto mulher e escritora, ou enquanto mulher que escreve, Vera Duarte exerce o direito a cantar o amor, a enunciá-lo tal qual o vive, o deseja, o sente pelos seus próprios sentidos, autonomamente, sem peias, sem condições. Não há pruridos nem mesuras, justamente porque a sua gramática é a da liberdade. Amor seu, de si, mas sobretudo amor para o outro, um outro que é outros, todos. Cá e lá, lá longe, por mais longe que haja nesse longe. Ou muito me engano ou é pelos caminhos do amor que Vera Duarte está na poesia. Por mais sofrimento que houver, por mais desencontros que surjam... O amor! 

Esperei longamente
mas tu não vieste quebrar com a tua presença
             o sortilégio que me alucina” (p 36)

Ou seja, apesar de tudo é preciso amar. Não nos esqueçamos que, já no seu livro “O Arquipélago da Paixão”, Vera Duarte cita John Keats e a sua defesa da “santidade dos afectos do coração”. Vejamos estes versos dela (p. 74):

O tempo existe para ser perdido
por isso não te fies nele
dá crédito apenas aos teus olhos
e deixa-te enganar
imperturbável
pelos sabores e pelas rotas
que te traçar o coração

Por isso mesmo a ausência do amor incomoda a nossa Autora:

Desaprendemos de amar o amor
Desaprendemos a beleza da vida
Desaprendemos a irredutível paixão” (p. 93)

Ainda por isso mesmo, e tranquilamente, Vera Duarte percorre os caminhos do erotismo na poesia. Um exercício livre e de frescura metafórica, ciente de que a poesia erótica é uma dimensão fundamental da criação poética. Já Eugénio de Andrade, no prefácio à pioneiríssima “Antologia de poesia erótica contemporânea”, por ele organizada e que foi publicada em 1973, defendia que se impõe “escutar o corpo, mostrá-lo assim esplêndido à luz crua da manhã”.

De Vera Duarte são os seguintes versos:   

quero-te debaixo dos frescos lençóis
feitos das ervas dos campos
            que
nossos corpos ardentes
tornarão húmidos de amor” (p. 42)

8. Vou concluir. E vou concluir por onde deveria ter começado: pelo título desta obra. O nosso Daniel Filipe levou-nos pelos caminhos d’ “A invenção do Amor”. Vera Duarte convida-nos a reinventar o mar. Não um mar qualquer mas um mar que é uma geografia de afectos e de paixões, uma imensidão de liberdade e de amor. E pergunto-te, Vera, permite-me que te pergunte pois não sei: “A reinvenção do Mar” não será, afinal, a constante reinvenção do (a)mar?
                                                                                                                  

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Obs.: este texto que ora partilho corresponde às palavras que pude proferir aquando da apresentação da obra ‘A Reinvenção do Mar’, na cerimónia pública que decorreu no Auditório do Instituto Internacional da Língua Portuguesa(IILP), na cidade da Praia, no dia 3 de Julho de 2018.


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