domingo, outubro 21, 2018

Jaime de Figueiredo: o Pintor que escrevia magnificamente






E penso nesta hora, por igual,
Em Jaime de Figueiredo inquieto,
Inquieto navio sem mar
E todavia conhecendo
As artes de navegar.”

(Gabriel Mariano, 
“Louvação da Claridade”, 1986)



1.   Praia celebra os seus 160 anos. É importante, é justo e é gratificante que, neste contexto comemorativo, esta nossa Cidade, orgulhosa da sua História, palpitante de Cultura e aberta ao futuro, tenha querido render homenagem a este seu filho ilustre que é Jaime de Figueiredo. Uma cidade é também a sua memória. Relevante é, igualmente, o facto de tal homenagem ser assumida e testemunhada pelos Escritores de Língua Portuguesa ora reunidos no seu VIII Encontro. Na verdade, o tributo dos próprios Pares é sempre duplamente tocante. Jaime de Figueiredo é plenamente merecedor! Porventura esta vénia chega com algum atraso, mas sirva-nos de consolo o velho ensinamento: nunca é demasiado tarde para fazer o que deve ser feito. Nesta cidade ele nasceu a 25 de Novembro de 1905 e nela viveu a maior parte da sua vida. Foi durante largos anos Conservador da Biblioteca Municipal, posição que lhe conferia particulares responsabilidades na projecção da apetência pelo conhecimento, do mesmo passo que alimentava a sua aura de homem sábio. Tendo falecido em 15 de Outubro de 1974, o nome dele foi caindo em relativo esquecimento, pese embora um que outro aceno, uma que outra lembrança a espaços registados. Veja-se que, já em 1984, Manuel Lopes, Escritor cabo-verdiano, autor de obras fundamentais como “Chuva Braba” e “Flagelados do Vento Leste”, exprimia o seguinte a propósito de Jaime de Figueiredo: “Hoje preocupa-me esta pergunta: para quando a homenagem que a sua cidade, a Praia, lhe deve?”. Pessoalmente, não deixo de sublinhar que Jaime é uma figura nacional, pelo que há uma parte da “dívida” que tem de ser assumida por Cabo Verde no seu todo. Importa não perder de vista que estamos a falar de uma personalidade largamente desconhecida no seu próprio país.

2.   Num como que percurso ou crescendo para o pleno reconhecimento do lugar e do contributo de Figueiredo, urge referir o livro organizado por Manuel Brito-Semedo e editado em Dezembro de 2017 com o título de “JAIME -  Dramaturgo, Pintor e Ensaísta”. Na ocasião, o Autor concedeu-me a honra de ser o apresentador dessa obra, obra de inegável valor e graças à qual o acesso aos trabalhos de Figueiredo resulta hoje muito mais facilitado aos cidadãos em geral. Bem-haja, Brito-Semedo.  

3.    Uma das pessoas que participou nesse volume editado em Dezembro é Oswaldo Osório, quem para o efeito produziu o belíssimo texto intitulado “Testemunho – Jaime de Figueiredo – Retrato do Intelectual sobre Tela Imperfeita”. Veja-se que, com a translucidez da modéstia que lhe é inata, Oswaldo Osório declara-se “biógrafo falhado”, mas a verdade é que esse retrato por ele traçado, qual esquisso de biografia, conduz-nos, palavra a palavra, a ver Jaime de Figueiredo, a vê-lo retratado, justamente, por quem com ele conviveu e, assim, dele nos diz com conhecimento directo, com o necessário rigor e distanciamento, mas também com evidente afecto. Trata-se de um retrato incontornável.
Contando com a vossa indulgência, dele leio alguns excertos: 

- “De estatura média, tez clara, o casaco de linho pardo livre sobre os ombros, com a habitual gravata grená, como uma bandeira, ora para cima, ora para baixo do ombro esquerdo, conforme soprasse o vento, Sr. Jaime, como era conhecido e tratado no Plateau e nos subúrbios, atraía sempre os olhares quer pelo seu magnetismo pessoal, quer pela inquietude que parecia acompanhá-lo”.

- “ .... ele dizia as coisas com um despudor quase cruel, mas também gostava da frontalidade das pessoas com quem se relacionava”.

- “sempre à la page, “catalisador e difusor de cultura”, como dizia de si próprio, não admira que JF granjeasse na proporção directa da sua popularidade, admiradores e apoucadores despeitados. Certo é que estava à frente de muita gente!”

- “JF era tudo isso. Brilhante, diverso, aquilo a que se chamaria hoje um animador cultural, apesar daquele seu porte de aristocrata da cultura”.

- “O intelectual irreverente que foi JF viveu sempre igual a si mesmo: irrequieto e estonteante.”

4.   Do meu lado, devo referir que aprecio vivamente Jaime de Figueiredo. A obra dele, pois não tive a sorte de o conhecer pessoalmente. Cheguei a textos de Jaime de Figueiredo nas já longínquas tardes de leitura na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Nesse tempo, inícios de 80, estudante de Direito, eu tinha construído o hábito de descansar das sebentas lendo obras de Cabo Verde que eram, já nessa época, de acesso mais dificultado. É assim que chego às venerandas antologias de 1960 e 61 e, considerando o que aqui especialmente interessa, à “Introdução” que Jaime de Figueiredo escreveu para “Modernos Poetas Cabo-Verdianos”, obra, aliás, por ele organizada. Não se perca de vista que essa é a primeira antologia de poesia cabo-verdiana alguma vez organizada e publicada. Este mérito é de Jaime Figueiredo e dele apenas. Tal “introdução” é um texto de fôlego fundo sobre a Literatura cabo-verdiana. Com efeito, trata-se, feitas as contas, de um verdadeiro ensaio sobre a moderna literatura cabo-verdiana. Nele, Jaime de Figueiredo aborda, com serenidade e segurança, matérias que hoje porventura estarão adquiridas ou ao menos dilucidadas à luz de novos instrumentos teóricos e mais alargado suporte documental. Por exemplo, defendia ele a especificidade da nossa experiência literária face ao que se produzia no restante mundo colonial português e mesmo no espaço da chamada poesia da Negritude. Repare-se que, face a um propósito oficial de “recolha sistemática da poesia ultramarina, abarcando as várias formas da expressão regional”, Jaime de Figueiredo, espírito livre e crítico, contrapõe o seguinte: “Falha porém esse propósito no caso da poesia caboverdeana, ao qual seus valores peculiares, temática própria e expressão individualizada, abrem lugar à-parte.”  No entender dele, “a literatura cabo-verdeana em formação vem irrompendo ao cabo de um longo processo subterrâneo de consciencialização cultural.” Não se perca de vista que isto foi escrito em 1961, com as marcas de coragem intelectual e cívica que hoje são cada vez mais raras entre nós. Jaime de Figueiredo é inequívoco no enaltecer da influência modernista no surgimento da moderna literatura cabo-verdiana. Diz ele: “Essencialmente, o esforço de verdadeira criação literária em Cabo Verde veio possibilitá-lo o exemplo da experiência modernista: foi ele o agente da profunda revolução operada num pequeno núcleo mais permeável de momento àquele influxo.” 
  Um outro ponto tratado por Figueiredo é o atinente ao papel do grupo claridoso e da “Claridade”. Ele não tem dúvidas em afirmar que a “Claridade” representa a “base da moderna literatura em Cabo Verde”. Acontece que Figueiredo não faz tal afirmação sem antes chamar para si o papel de irradiador da, como ele próprio diz, “influência estética do grupo “atlanta” sintonizada com a doutrinação da “presença”, e mais tarde dinamizada por próximos contactos em S. Vicente”. Como se sabe, este entendimento foi anos mais tarde reequacionado por Arnaldo França em termos absolutamente equilibrados (1). Que fique claro: ninguém regateia a Figueiredo o seu lugar no seio do movimento claridoso. Oswaldo Osório, no retrato já hoje aqui referido, diz-nos que Jaime de Figueiredo “sempre se considerou co-fundador e claridoso como os seus pares, Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa”. Arnaldo França, por seu turno, colocara a questão do seguinte jeito: “Jaime de Figueiredo um claridoso? Sim! E um fundador do grupo e da revista.” De resto, veja-se que Baltasar Lopes, no seu memorável discurso no simpósio de 1986, refere-se a Figueiredo claramente como um seu par na empreitada claridosa. Conta-nos que, considerando as poucas possibilidades financeiras do Grupo Claridade, Jaime apelidava este de “grupo proletário” (2).
    Mas, ao recordar estas questões, estou apenas a querer sublinhar a importância dessa “Introdução” escrita por Figueiredo em 1961, pondo em evidência as suas qualidades de Ensaísta de primeira água. 

5.   Naturalmente que não é possível falar de Jaime de Figueiredo sem recordar a comovida comunicação do Dr. Arnaldo França ao “Simpósio Internacional sobre Cultura e Literatura Cabo-Verdianas” organizado por ocasião do cinquentenário da revista “Claridade” e que decorreu, no Mindelo, de 23 a 27 de Novembro de 1986. Chegado ao púlpito para proferir a sua intervenção, o Dr. França não conseguiu conter as lágrimas. Via-se nele saudade, admiração e muita amizade. A comunicação em referência intitulava-se “Jaime de Figueiredo e a Claridade”. Ao escutá-la, reforçou-se em mim a ideia de que Jaime tinha sido uma personagem singular. Uma verdadeira personagem de um bom romance. Ainda recentemente, aqui na Praia, em conversa com Arménio Vieira ele dizia-me: “Jaime era um conversador nato”. O que, aliás, equivale à opinião de Quirino Spencer Salomão, citado por França (3), quando assevera que Figueiredo “era um conversador excepcional que vibrava de entusiasmo na exposição de assunto que reputasse de interesse. Com grande talento, clarificava todas as questões que abordasse, por mais complicadas que fossem.” No mesmo sentido vai, igualmente, Manuel Lopes, quem vê em Jaime de Figueiredo “uma das inteligências mais lúcidas e excitantes que as nossas ilhas produziram” (4). Ou seja, há uma clara unanimidade nos juízos elogiosos sobre a figura de Jaime de Figueiredo.

6.   De Figueiredo enquanto Ensaísta e Crítico Literário exigentíssimo são conhecidos ainda os seguintes trabalhos: “O Ensaio de Interpretação do ‘Nocturno’ de Osvaldo Alcântara”, “António Nunes, Poeta do Quotidiano Crioulo” e “O Sentido da Morna e das Coladeiras”. Este último texto teve agora a Câmara Municipal da Praia a meritória lembrança de o reeditar em fac-simile, facto que saúdo vivamente.

7.   Na produção literária de Jaime de Figueiredo, uma menção muito especial é devida ao texto intitulado “Terra de Sôdade: Argumento de Bailado Folclórico em Quatro Quadros”. De criação retintamente literária, esse é, na verdade, o único texto conhecido, até agora. Por ele, e a partir da Brava, o Autor lança um olhar sobre a nossa Emigração e o que nela ou em torno dela existe de esperança, de amor, de desencanto, de dor, de sofrimento. Trata-se de um texto de criação dramatúrgica, meticulosamente concebido e escrito com um sentido de contenção claramente indutor da melancolia que é, porventura, a sua marca estética mais saliente. De resto, importa reparar no quanto explícita é a intertextualidade que o Autor estabelece com Eugénio Tavares. Li tal peça com gosto e fiquei a imaginá-la em cena. Um dia será, assim acredito e espero. De resto, um ponto que não posso deixar de referir é o seguinte: na experiência literária cabo-verdiana, a escrita de textos para o Teatro é pouco praticada, escassa mesmo quando comparada com outros géneros. É só ver que, desde os primórdios da Literatura nestas ilhas (século XIX) até finais dos anos 80, apenas dez Autores produziram textos dramáticos, sendo Jaime de Figueiredo um deles. Sobre este tópico há investigação de suporte por José Luís Hopffer Almada e João Branco.

8.   Prossigamos. Uma referência é agora devida a uma faceta de Jaime de Figueiredo: a de Artista Plástico. Num depoimento a um programa da rádio, em 1953, dizia João Lopes o seguinte: “Nestas alturas, o Jaime fixa o seu ‘atelier’ nos baixos de prédio da Casa Madeira e pinta febrilmente com pincel e caneta, produzindo obras que surpreendem António Pedro pelo vigor e viveza das suas cores mas, helas! faz um dia para rasgar num outro dia, na ânsia de se aperfeiçoar.
  Deste choque, do movimento, conversas, passeios e tertúlias resulta o livro Diário de António Pedro, em que Jaime interveio com as suas sugestões e com uma linda caneta-capa, desenho de uma ‘badia’ dançando batuque.
  A custo e quase que às escondidas do Jaime, o António Pedro consegue levar para Lisboa alguns quadros a óleo daquele, que, expostos em Lisboa, no primeiro Salão dos Independentes, obtiveram honrosas classificações (...).
  Os seus assuntos de desenhos caracterizam-se pelas observações vividas nos casos locais, gentes humildes, carregadeiras de ponte e carvoeiros de mãos calejadas, etc. São desenhos-esculturas, em que o volume e os músculos de gente da gleba se faz ressaltar na sua movimentação de um realismo surpreendente”.
   Por seu turno, Oswaldo Osório enaltece os “seus belos desenhos de traço firme e rítmicos publicados no Jornal da Europa em 1928”.
  Parece claro que o ponto decisivo na projecção de Figueiredo foi essa participação no Salão dos Independentes. Um dos seus desenhos expostos nesse Salão veio a ser capa da revista Presença e, logo a partir de 1929, Jaime passa a ser delegado em Cabo Verde dessa revista-referência do Modernismo em Portugal. O relacionamento evolui rapidamente, em particular através de expressiva correspondência com essa figura cimeira que era João Gaspar Simões, correspondência essa que, na leitura de Arnaldo França, “é muito significativa das relações que se estabeleceram e do apreço que o nosso conterrâneo merecia à revista e testemunha das leituras e interesses artísticos que o prendiam”(5). 
  É verdade que são posteriores a essa data os trabalhos mais elaborados, mais burilados, mas parece-me justo pleitear que Jaime era um artista intrinsecamente modernista que acaba por encontrar-se com o modernismo, em particular o modernismo português, e com isso ele ganha em maturidade artística, aperfeiçoa-se. Mas já antes, solitário no seu atelier, ele ansiava por e buscava um modo próprio, diferente de expressão. Ou seja, um modo que lhe permitisse uma relação mais ‘realista’ com o meio que o circundava. Na verdade, e como ajuíza o mesmo Arnaldo França, “foi o conhecimento e posterior estabelecimento de laços com a revista do modernismo português Presença, que despoletaram as energias latentes em Jaime (...)” (6).
   Seja-me permitido referir o seguinte: parece-me importante que se retome e seja concretizado o projecto de criação da “Galeria de Arte jAiME”, quanto mais não seja para podermos ter contacto com obras de Jaime - Artista Plástico, em especial com o quadro de 1934 que, pelos vistos, é a única pintura com localização certa... e próxima. 

9.   Se bem ajuízo, o Jaime Artista Plástico é omnipresente na sua escrita. As linhas ágeis, quase austeras, dir-se-ia que guiadas por uma urgência de fixar a riqueza da realidade que o cerca, o povoa, o inspira, o faz viver num estado de frenesim criativo, tais linhas marcam a escrita de Figueiredo. É a mesmíssima mão, urgente e grave. Espartana mesmo. Dir-se-ia tributária de uma estética do essencial. Veja-se que Jaime de Figueiredo é um Cultor da língua portuguesa. Sente-se isso em cada palavra por ele escrita. Dá gosto ler os seus textos. Ele escreve de modo decantado, cada palavra finamente colhida e cuidadosamente colocada. E, entretanto, estamos a referir-nos a alguém que nos deixou “parcas contribuições escritas”, como bem observa o Dr. Arnaldo França. A meu ver, ele escreveu pouco, é certo, mas esse pouco é sumarento e é de primeiríssima qualidade. Jaime integra, de pleno direito aquilo que, há já algum tempo, qualifiquei de linhagem. “Uma fina e selecta linhagem de Autores que, qualquer que seja o tema, escrevem sempre com um apurado sentido de elegância e de afecto pela língua, neste caso, a língua portuguesa. E isto é claramente uma riqueza quando nos referimos a uma História da Escrita em Cabo Verde” (7). Não especificamente a Literatura ou o jornalismo ou o texto científico... a Escrita! O escrever bem. Não por capricho ou vaidade, mas porque assim tem de ser. A recusa do mais-ou-menos, antes uma clara opção pelo exercício da excelência na utilização da língua portuguesa. Jaime haveria de sofrer se tivesse de conviver com o impiedoso regime de maus-tratos a que a Língua Portuguesa é submetida nos dias de hoje. 
   E termino por onde comecei: sublinhando aquilo que Gabriel Mariano louvou nos seus versos dirigidos a Jaime de Figueiredo: o espírito inquieto que, ‘conhecendo as artes de navegar´, apontou-nos os caminhos do modernismo e legou-nos o dever da inquietação.



Notas:

(1) Arnaldo França, “Jaime de Figueiredo e a Claridade”, in Actas do Simpósio Internacional sobre Cultura e Literatura Cabo-Verdianas (Mindelo, 23 a 27 de Novembro de 1986), Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2010, 75ss.

(2) Baltasar Lopes, Discurso, in Actas do Simpósio..., ob. cit. na nota 1, 23ss. Aliás, Baltasar Lopes refere o mesmo na sua entrevista a Michel Laban, Cabo Verde: Encontros com Escritores, Fundação Eng. António de Almeida, Porto, s/d.

(3)   Arnaldo França, ob. cit., 78.

(4) Manuel Lopes, Entrevista in João Lopes Filho, Vozes da Cultura Cabo-Verdiana: Cabo Verde visto por Cabo-Verdianos, Ulmeiro, Lisboa, 1998, 142.

(5)   Arnaldo França, ob.cit., 76.

(6)   Arnaldo França, ob. cit., 75.

(7)   Jorge Tolentino, Tempos de inCertezas, Spleen Edições, Praia, 2016, 36.


Obs.
Este texto fixa a intervenção de homenagem a Jaime de Figueiredo que me coube fazer na sessão especial que lhe foi dedicada e que marcou o primeiro dia do ‘VIII Encontro de Escritores da Língua Portuguesa’, o qual decorreu, na cidade da Praia, de 19 a 21 de Abril de 2018. 
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