segunda-feira, outubro 22, 2018

A Liberdade de Imprensa é uma construção quotidiana

1.   No romance “As Boas Intenções”, de Abelaira, publicado em 1963, nos tempos da luta anti-fascista, há uma personagem, o Vasco, que propugna “um jornal para suprimir quando houver completa liberdade de imprensa”.
Ora bem. Nós ainda estamos na fase de fundar jornais. Que é como quem diz, o trabalho não está concluído, se é que algum dia o estará. A liberdade de imprensa é uma construção quotidiana. Na mesma medida em que a Democracia também o é. Não há liberdade de imprensa sem Democracia: necessitam uma da outra.

2.   Se assim é, parece-me importante que valorizemos o longo caminho já percorrido, aqui em Cabo Verde, em matéria de liberdade de imprensa. A noção de perspectiva ajuda a ser mais sensato e justo. Nada cai do céu nem nada surge do nada. Discreta que tenha sido, há sempre uma pedra colocada algures no passado. 

3.   O que temos hoje nada tem a ver com o que havia há 42 anos. Pessoalmente, tive a oportunidade de pôr os pés na redacção do jornal “Voz di Povo” ainda em 1979. Pouco depois fiquei com um vínculo estabilizado. De lá para cá, tenho seguido com atenção os avanços da nossa Imprensa. Em 1986, através de um artigo publicado, em Lisboa, no jornal África, exprimi a minha leitura crítica daquilo que era a imprensa nessa época. Defendi que, mesmo nas condições político-institucionais então vigentes, o Estado tinha de poder ser um garante da liberdade de imprensa e tinha de haver qualidade. Que era possível assegurar a liberdade através dos órgãos públicos de informação ou, como se dizia, dos “meios de informação e comunicação”, os quais, nos termos do artigo 11º da Constituição de 80, integravam o domínio da “propriedade do Estado”. Tratou-se de uma opinião ousada, se calhar romântica, reconheço. Caiu-me em cima algum processo por delito de opinião? Não! Esse tipo de dissabores vim a ter sensivelmente uma década depois. Hoje em dia qualquer um pode, na sua página nas redes sociais, julgar à distância e dizer o que lhe apetecer sobre o passado. É também a Liberdade a funcionar. Mas não disseram na hora devida. Não nos esqueçamos do seguinte: a liberdade de imprensa anda a paredes-meias com a liberdade de espírito. Flaubert é quem é, isso é indiscutível, mas Jean-Paul Sartre atacou-o fortemente por ele não ter dado a autoridade da sua voz àqueles que a não tinham. O silêncio é corrosivo.

4.   Apesar da instauração da Democracia e de todo o respaldo trazido por esse ganho inquestionável que é a Constituição de 92, os chamados anos 90 foram turbulentos no que se refere à Comunicação Social e à liberdade de imprensa. Tudo o que não era suposto acontecer, aconteceu. Prova provadade que a liberdade não se esgota nas proclamações e nem se basta com a letra das disposições constitucionais.   

5.   O arranque dos anos 2000 dá-se sob um ambiente de crispação. Da penúria de meios às dívidas, das ingerências à desconfiança. Coube-me ser o primeiro governante do sector, logo em 2001. Sei, sabemos todos, qual era o quadro nessa altura e parece-me que há uma enorme evolução de lá para cá. Ter memória é também uma questão de decência. 




6.   Julgo que uma grande nódoa da nossa Comunicação Social é a auto-censura. Mas não se caia no erro de pensar que se trata de um mal exclusivo desse sector. Não! Ele está presente nas mais diferentes esferas da nossa sociedade. Lá onde menos se espera... O que acontece é que o trabalho dos Profissionais da Comunicação Social está mais visível, é imediatamente colocado ao consumo e à avaliação dos cidadãos, merecendo ataques demolidores no que não esteja bem, nunca se ouvindo aplausos ao que seja bem feito. Há muito escrevi que se trata de um sector que sofre o drama de ser uma “fractura exposta”. Como quer que seja, parece-me que um antídoto eficaz ao auto-condicionamento é a formação, ou seja, a procura constante da actualização dos conhecimentos como garantia da solidez profissional e da liberdade de espírito. Cada um tem de ser inatacável naquilo que faz enquanto profissional. Do lado do empregador, a começar pelo Estado, é fundamental que sejam asseguradas todas as condições necessárias à normal realização da missão de informar com qualidade e isenção. A primeira condição é a liberdade; a liberdade é o perímetro vital dos Jornalistas e demais Profissionais da Comunicação Social. O Estado tem de ser cioso da enorme responsabilidade que lhe cabe que é a de ser garante contra as tentações de intervir ou condicionar – tentações suas e de outros. Os contratos de concessão têm de ter vida efectiva e têm de ser respeitados e cumpridos. É fundamental que haja gestores sintonizados com as especificidades do sector. Por seu turno, a nossa sociedade tem de crescer para a valorização dos Profissionais da Comunicação Social, compreendendo e enaltecendo o seu papel. A regulação tem de fortalecer-se.

7.   Não se perca de vista que somos uma sociedade pequena e com baixo sentido crítico. Não estou a referir-me à má-língua; refiro-me à capacidade de discernir e ajuizar com rectidão. O nosso olhar crítico é quase míope. O contexto social de excessiva vizinhança e familiaridade uns com os outros ofusca o discernimento. Um outro factor de perturbação é a forma e a intensidade como tudo é contaminado pelas valorações político-partidárias. Ou é amarelo ou é verde. Basicamente. Estamos tão cercados por este mal que não enxergamos outras cores. Não conseguimos ser razoáveis. A sensatez tornou-se um bem raro.

8.   Um outro ponto é o seguinte: não se deve viver obcecado pelos ratings. Aliás, Chega a ser caricata a forma como nos pomos nos bicos dos pés para receber a graça das avaliações de quem, lá longe noutras esquinas do mundo, faz os tais índices, os tais rankings, assim uma de espécie pauta com as notas de fim de período lectivo. Julgo mais útil que nos concentremos em melhorar o que falta melhorar, fazer o que tem de ser feito, no interesse da sociedade cabo-verdiana, antes de tudo o mais. Temos de ser os primeiros a desejar o melhor para nós mesmos. Porventura os ratingsnão valorizem aspectos que serão mais prementes para nós mesmos.

9.   Penso que, nos dias de hoje, temos dois grandes desafios à Comunicação Social e à sociedade cabo-verdiana: o desafio da qualidade e o da responsabilidade. Em que é que se traduzem tais desafios?

a)   Tanto a qualidade como a responsabilidade têm de ser entendidas como exigências do amadurecimento da cidadania e do espaço público no país. E vou por exemplos. Parece-me que urge descomprimir a Comunicação Social face ao peso da notícia política ou facto político. Do corriqueiro ou mundano da vida política. Há um peso desmesurado da politica: as transmissões em directo, as entrevistas, os debates, tudo mete políticos. Tudo é visto pelos olhos dos políticos. Pior ainda: são sempre os mesmos a tocar nas mesmas teclas. Ou seja, é preciso dar mais espaço a outros domínios que possam, aliás, dar-nos ideia da inteligência, da criatividade e da pujança que existem neste país. A política (ainda) não representa o melhor de nós. Quando estivermos de acordo sobre isto, estaremos na via da qualidade.

b)   Sinal de qualidade é também a correcta destrinça entre o que é facto e o que é opinião, quem noticia e quem opina. Da mesma forma, falta segmentação no tratamento das matérias. Nem tudo tem de chegar ao principal noticiário nacional. Às vezes parece que não há critério.

c)   De um modo geral, temos de subir a fasquia. Por exemplo, quem tem a oportunidade de publicar um artigo de opinião ou de participar num debate radiofónico ou televisivo ou online tem de ter a preocupação, a responsabilidade! de ajudar a elevar o nível do nosso espaço público. Urge evitar a armadilha dos lugares-comuns e da vulgaridade.

d)   Igualmente, penso que é preciso assegurar mais pluralismo. É perniciosa a diminuição da oferta na imprensa escrita. O facto de haver jornais a fechar por causas evitáveis desqualifica o quadro de liberdade de imprensa no país. Cada um tem de assumir as suas responsabilidades. Ao Estado não pode ser indiferente que haja jornais a fechar; tem de ajudar na construção de soluções, porventura indo mais além daquilo desde há muito já faz. Há o problema do financiamento ou da sustentação, da mesma forma que há o da boa gestão; são faces da mesma moeda.

e)   Um dado negativo que urge resolver é o anonimato. É algo que nos desqualifica. Quem está abertamente na arena do debate não pode ser cobardemente atacado. Não faz sentido. Repito: isto é um meio pequeno, de interconhecimento. E não estou a falar só das edições digitais.  É preciso pôr cobro a essa historia de notícias, reportagens na base de declarações e opiniões de especialistas sob anonimato. Especialista que não se identifica?!... Combater o anonimato é uma questão de qualidade, mas é também um problema de elevação dos níveis de responsabilidade e responsabilização na nossa sociedade.

f)     Para um país pequeno como o nosso é essencial apostar no chamado jornalismo ético. Vivemos num tempo globalizado e acelerado. Os avanços tecnológicos desactualizam-se rapidamente; pelas plataformas digitais as notícias chegam-nos às catadupas. O mundo alcança-se com um simples click. Atenção: há uma vastidão de fontes produtoras e emissoras de factos, quase-factos, não-factos. Tempo dos chamados factos alternativos. Trata-se, na verdade, de uma realidade muito mais complexa, o que torna também mais complexa a garantia da qualidade e o funcionamento da regulação. 

g)   A questão que efectivamente fica é a seguinte: nesta era da globalização, qual a margem de manobra de um pequeno país como o nosso? Eu acredito que temos condições para estar do lado da liberdade de imprensa com qualidade, com rigor e isenção. Não é forçoso que nos percamos na balbúrdia. Os profissionais da área têm de fortalecer-se quotidianamente e o “público consumidor” tem de crescer na sua capacidade de ajuizar criticamente e exigir qualidade. Tem de ser preservado o compromisso com aquilo que é essencial no Jornalismo, na Comunicação Social: a verdade.

10.Penso que estamos no bom caminho, com um sentido ascendente. Não há lugar para estragar ou regredir. O desafio é o de avançar mais, cada vez mais.




 Obs.: Este texto é o do depoimento inicial que proferi no Painel Interactivo 1: “Liberdade de Imprensa, regulação e responsabilização na era do digital e da globalização”, no âmbito do IV Diálogo EstratégicodoInstituto Pedro Pires, subordinado ao tema “Democracia e Imprensa Livre”, na cidade da Praia, aos 6 de Maio de 2017.














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