quinta-feira, julho 11, 2019

Duas Notas Críticas sobre a Literatura Cabo-Verdiana. Ou talvez três



Julinha abriu os braços.
´Não é preciso empurrar’, alteou a voz – ‘tem comida e roupa pa toda a gente.’
Nem a ouviram porque os primeiros entraram de roldão, impelidos pela onda de trapos e fome que irrompera ululando. Mam Zabêl sentiu-se ir na leva e, meio sufocada, foi atirada para junto de uma caixa aberta, atafulhada de embrulhos.
Julinha protestava ainda:
‘Adê, o que é isto? Assim não, assim não!’
O burburinho abrandou somente quando o quintal se encheu e nem mais uma criatura de Deus podia lá entrar sem ficar lapadinha a outra.
Bia Sena foi encaminhando as mulheres para uma casota onde as despia. Era uma operação lenta, dolorosa para a vista, penosa para quem a fazia. Ao cabo, saiam transformadas nos fatos novos, envergando vestidos de seda, farfalhudos, em chifon ondulante com alastrados estampados azuis, vermelhos. Algumas reapareciam com chapéus de praia, descaídos, capelines de crina, realçadas de flores e tule, feltros enterrados sobre as orelhas encardidas.
Nha Joninha fez uma aparição imponente. Acaçapada num belo casaco castanho que quase lhe cobria os tornozelos, com duas raposas a acariciarem-lhe o pescoço e as orelhas, trazia a balançar numa das mãos uma carteira de palhinha entrançada. Um rumor admirativo acolheu-a. Mam Zabêl sentiu um frémito ao vê-la. Quase correu. Furou onde podia, esquecendo-se do bordão, onde se amparava. Tropeçou, entretanto, e caiu de bruços, mesmo junto à casota. Um grito elevou-se da pequena multidão e duas mulheres ajudaram-na a sentar-se.
Um fiozinho de sangue na boca, conseguiu desenvencilhar-se delas e, a rastejar, aproximou-se. De joelhos, agarrou a saia de Bia Sena:
‘Arranja-me um casaco de Merca, um casaco como esse de Joninha.’
Bia acalmou-a:
‘Tem esmola pâ toda a gente.’

                               Orlanda Amarilis, ‘Esmola de Merca’, in ‘Cais-do-Sodré té Salamansa’, 1974.


1.    A Literatura Cabo-Verdiana sempre foi movida por uma genuína preocupação de registo da experiência humana nestas ilhas. Registo autêntico e de qualidade. E esta é, seguramente, a sua mais límpida credencial para o lugar, que é seu e é de direito, no património literário universal. A literatura produzida nestas ilhas é universal.

2.    E nem poderia ser de outro modo pois que o universal sempre esteve morado aqui no quintal destas ilhas. Somos ‘as ilhas do meio do mundo’, na expressão cunhada por Oswaldo Osório. E somo-lo desde sempre. Quando, logo na hora inaugural, o mundo veio bater ao portão deste arquipélago. Quando por cá passaram as naus à descoberta de novos mundos. Quando nestas águas lançou âncoras o Comércio Triangular e o seu estendal de sofrimento e ignomínia. Quando nestas paragens se foi erguendo uma sociedade escravocrata, a primeira de todas, cuja herança é multifacetada e é bem presente. Quando Negros e Brancos à mistura protagonizaram este extraordinário resultado que é o Cabo Verde de hoje: uma sociedade mestiça, orgulhosamente crioula, e que tem na Língua Cabo-Verdiana, o Crioulo, a sua irrevogável marca identitária. E não se perca de vista que ser crioulo é viver num contínuo abraço com o mundo. É ser inclusivo e tolerante. É ser naturalmente cosmopolita, por imposição cromossomática mesma.

3.    Por força da sua participação nas odisseias baleeiras, o cabo-verdiano chega muito cedo à América. Ainda na primeira metade do século XVIII. Trata-se de algo que rapidamente se intensifica. Mais tarde, os originários destas ilhas vêm a ser a primeira Nação africana que voluntariamente emigra para os Estados Unidos da América, começando com pequenos contingentes de emigrantes documentados. Isto a partir de 1860.  Mas o que desejo sublinhar, aqui e agora, é o seguinte: a literatura acompanhou o cabo-verdiano já nessa fase de arranque da sua longa experiência de andarilho do mundo. João Augusto Martins, ao publicar, em 1898, o seu livro ‘Horas Tristes’, ‘introduz no nosso universo literário o emigrante e a sua vivência na diáspora, com realce à força motivadora da partida no século XIX: a pesca da baleia.’ (1)

4.     A Literatura cabo-verdiana não é um epifenómeno; o que temos hoje é o resultado de um longo processo de crescimento e não é por acaso nem por favor que ela é um dos mais sólidos pilares culturais da Nação. Parodiando o Poeta, pode bem dizer-se que este país é também uma Literatura.
No processo de crescimento da Literatura cabo-verdiana foi, tem sido, decisiva uma natural, porventura urgente, apetência pelo mundo. A necessidade dele. Pois que à partida tudo joga contra, tudo é obstáculo ou as dificuldades são a dobrar mesmo. Primeiro, o isolamento, o estar fisicamente distante dos grandes centros onde os avanços acontecem e a modernidade se afirma. Incluindo a modernidade literária, pois com certeza. Uma ponte muito firme para o mundo mais largo sempre foi a leitura. Com efeito, é pelos caminhos da leitura que, neste nosso arquipélago, o mundo sempre esteve cá dentro, sempre soubemos dele e sempre o sentimos. A leitura sempre foi uma das nossas janelas. 
“Com os veleiros, na linguagem barbosiana, os vapores, os paquetes... Com eles vinha sempre uma peça para leitura, quando não livros ao menos uma revista ou um jornal já desbotado. Era muita a sede de ler.
E é, de facto, emblemático o exemplo da geração da Claridade. Há vários depoimentos e registos. Mas recordemos a seguinte passagem de uma carta de Jorge Barbosa a Manuel Lopes, de 21 de Outubro de 1933: “remete-me os últimos números das Nouvelles Littéraires e a Presença, depois do nº 38” e ainda “alguns livros interessantes, tudo empacotado e ao cuidado de qualquer capitão conhecido.” E “se não tens Presença pede-a ao (Jaime) de Figueiredo”.  
Naturalmente que existe um vinculo entre a leitura e a evolução do Ensino em Cabo Verde. Não apenas porque nas escolas, nos seminários, nos liceus se foi aprendendo a ter os instrumentos necessários para ler, mas sobretudo porque se foi afirmando uma atitude favorável à leitura enquanto ponte para o conhecimento ou uma janela para outros mundos. 
Talvez porque o nosso “meio pequeno” (a expressão é de Manuel Lopes) fosse ainda mais apertado do que é hoje, a leitura e o conhecimento gozavam de uma valorização social muito mais forte. Havia, vincada, a ideia da “pessoa culta”. Não necessariamente por virtude de um título académico, mas pelas provas que dava de conhecimento, de sabedoria, de autoridade adquiridos nesses outros mundos a que se chega através da leitura. 
Muitas figuras ilustres da nossa Cultura, da nossa História não tiveram a sorte de ir ao ensino universitário (eram outros tempos, outras dificuldades, outras regras também) mas foram pessoas sabedoras, marcaram o seu tempo. Souberam desfrutar de outras janelas para o mundo.” (2) 

5.     Uma outra condicionante foi seguramente o apertado policiamento da liberdade de expressão exercido pelas autoridades coloniais.Ou seja, também aqui em Cabo Verde se sofreu duramente nas mãos da censura. Os casos são muitos, dos tempos da Claridade aos da Seló, passando pelos da Certeza e do Suplemento Cultural. Recordo um exemplo apenas: Baltasar Lopes foi proibido de publicar aqui nas ilhas o seu conto “A Caderneta”. Conseguiu publicá-lo com a Vértice, de Coimbra, em 1949. Dizia ele que a censura em Cabo Verde era “mais papista que o Papa naqueles anos de salazarismo fascistóide”. (3)

6.     À partida tudo joga contra, é certo, mas nenhum obstáculo foi intransponível. A qualidade da oficina literária cabo-verdiana afirmou-se desde cedo, mais demonstrando, por isso mesmo, uma conquistada aptidão para ir além das fronteiras da Nação. Ou, utilizando a construção da Professora Carvalhão Buescu, um ‘potencial  supranacional’ que, no caso cabo-verdiano, ainda não se cumpriu inteiramente, a meu ver. O nível estético-literário assegurado às obras por cá produzidas traduzia um desejo de conhecimento por parte de espaços mais largos. Queriam ser lidas por mais leitores, lá longe, por esse mundo fora. Pelo selo da qualidade, recusavam o confinamento. Nessa perspectiva, António Aurélio Gonçalves sublinhava a necessidade de o Escritor cabo-verdiano ser ‘um verdadeiro intelectual, trabalhador insatisfeito’. Se bem ajuízo, ser ilhas é porventura o modo mais sofrido de ser mundo.

7.     Como é que retratos tão pungentes dos dramas humanos vividos neste arquipélago não desejariam voos mais rasgados? ‘Chiquinho’, ‘Chuva Braba’, ‘Famintos’, ‘Os Flagelados do Vento Leste’... Como refere o mesmo António Aurélio Gonçalves, ‘havia a necessidade de protestar e de dar o alarme’. Ou seja, provocar eco junto de audiências mais alargadas. Não apenas na então chamada Metrópole ou no Brasil. Faltou-nos, ao longo do caminho, mais mercado, mais leitura e recensão crítica e divulgação. Mais tradução também, como é evidente. Repito: mais tradução.

8.     Veja-se que quando ocorrem as chamadas ‘Comemorações Henriquinas’ e, nesse contexto, se monta uma operação de enaltecimento de uma ‘literatura do espaço colonial português’, a Literatura cabo-verdiana, essa,  já estava bem definida no seu rumo, na sua identidade. Coube a Jaime de Figueiredo organizar “Modernos Poetas Cabo-Verdianos”, que é a primeira antologia de poesia cabo-verdiana alguma vez organizada e publicada. Ao escrever a sua inspiradíssima “introdução” a essa antologia, Figueiredo produz, feitas as contas, um verdadeiro ensaio sobre a moderna literatura cabo-verdiana. Nele aborda, com serenidade e segurança, matérias que hoje porventura estarão adquiridas ou ao menos dilucidadas à luz de novos instrumentos teóricos e mais alargado suporte documental. Por exemplo, defendia ele a especificidade da nossa experiência literária face ao que se produzia no restante mundo colonial português e mesmo no espaço da chamada poesia da Negritude. Repare-se que, face a um propósito oficial de “recolha sistemática da poesia ultramarina, abarcando as várias formas da expressão regional”, Jaime de Figueiredo, espírito livre e crítico, contrapõe o seguinte: “Falha porém esse propósito no caso da poesia caboverdeana, ao qual seus valores peculiares, temática própria e expressão individualizada, abrem lugar à-parte.”  No entender dele, “a literatura cabo-verdeana em formação vem irrompendo ao cabo de um longo processo subterrâneo de consciencialização cultural.” Não se perca de vista que isto foi escrito em 1961, com as marcas de coragem intelectual e cívica que hoje são cada vez mais raras entre nós. Jaime de Figueiredo é inequívoco no enaltecer da influência modernista no surgimento da moderna literatura cabo-verdiana. Diz ele: “Essencialmente, o esforço de verdadeira criação literária em Cabo Verde veio possibilitá-lo o exemplo da experiência modernista: foi ele o agente da profunda revolução operada num pequeno núcleo mais permeável de momento àquele influxo.” 

9.     No percurso da experiência literária nestas ilhas, há uma dimensão que desejo sublinhar e que é a da participação das Mulheres.Nesse combate, já antigo, pela afirmação e o enriquecimento da Literatura cabo-verdiana, as mulheres têm estado em pé de igualdade com os homens. Lá nas origens já havia Antónia Gertrudes Pusich. De lá para cá, podemos referir Autoras da craveira de Orlanda Amarilis, Yolanda Morazzo, Maria Margarida Mascarenhas, Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Vera Duarte, Ondina Ferreira, Hermínia Curado Ferreira, Leopoldina Barreto, Ivone Ramos, Luísa Queirós, Carlota de Barros... Felizmente, novos nomes têm surgido e têm construido o seu caminho: Eileen Barbosa, Margarida Fontes, Natacha Magalhães, Eurydice Monteiro. Igual e por inteiro, as mulheres Escritoras vão assegurando o seu quinhão. Porventura faz falta falar mais desse quinhão. Quem, hoje em dia, lê os belíssimos contos de Maria Margarida Mascarenhas? Estará devidamente conhecido o exemplo de Maria Helena Spencer? Hoje existe todo um estendal de escritos e pronunciamentos sobre a Mulher, os seus direitos, a discriminação e os diversos tipos de violência de que ainda é vítima. Mas é absolutamente pioneiro e arrojado o texto de Orlanda Amarilis, intitulado ‘Acerca da Mulher’, publicado no número 1 da revista ‘Certeza’, em 1944. Mais tarde, no conto ‘Esmola de Merca’, já aqui referido, há uma personagem, Titina de seu nome, que ‘escrevera um artigo sobre a emancipação da mulher para o jornal dos rapazes do liceu’, facto que a fez merecer do Administrador do concelho a seguinte admoestação: ‘Já lhe cortei o artigo. Não me venha prá aqui com espertezas.’ A consciência da injustiça e a sua denúncia são anteriores ou independentes de teses ou movimentos ou propostas ideológicas mais ou menos militantes. É um posicionamento avant la lettre.
Ou seja, mais do que repescar debates que têm tido pertinência noutras latitudes, como o de saber se existe uma escrita “no feminino”, as Escritoras empenharam-se em fazer o seu caminho e em ter voz, livre e igual, na Literatura cabo-verdiana. Parece-me, assim, mais produtivo enaltecer o contributo delas (repito: em pé de igualdade), pondo em destaque o que de inovador exista nesse contributo, designadamente em termos de rasgo temático ou estético. Da qualidade literária, afinal. Não será isto o essencial? (4)

10.  Faço toda esta estrada, longa mas também lacunosa, eu sei, para poder exprimir alguns questionamentos. A começar, o que é que nos falta fazer para que esta grande literatura produzida neste pequeno país tenha a projecção internacional que plenamente merece? Ou seja, já não nos basta a apetência pelo mundo; estamos na hora de ganhar o mundo. O dever de ser mundo e estar nele. Falo de ambição. Ambição colectiva, naturalmente. Temos agora o dever de ser ambiciosos. Antes de mais, temos de estar em sintonia sobre o quê é que está em causa. Temos de saber muito claramente qual o destino, até onde é que queremos chegar. Não me parece avisado entender a projecção internacional como o resultado eventual de iniciativas dispersas e incomunicantes umas com as outras. Tem de haver uma intencionalidade nacional. Uma ‘estratégia’, se se preferir. Somos demasiado pequenos para não sabermos ser grandes lá fora. Dito de outra forma, a Literatura cabo-verdiana é uma riqueza inequívoca e temos de, juntos, saber promovê-la, rentabilizá-la. E acrescento a seguinte evidência: não há projecção internacional sem custos. Temos de ser consequentes nos engajamentos, nos financiamentos, para ser mais claro, no saber semear para colher mais à frente, seguramente que na contramão dos calendários mais mediáticos. Trata-se de uma aposta nacional que tem de ser feita. As longas viagens pressupõem mais siso no aprovisionamento em água e víveres. 
Desde o ângulo das oficinas literárias, não se deve afrouxar a mão. O compromisso com a inventividade e a qualidade tem de ser inquebrantável. Não deve haver concessão. Bem sei que a auto-vigilância é mais intensa e mais penosa numa sociedade pequena, de interconhecimento, com baixo sentido crítico, de louvação fácil e descontraída, com ainda escassas instâncias de análise e pronunciamento crítico, com débeis ou inexistentes reacções dos leitores. Mesmo as sessões públicas de apresentação de livros tendem a ser meramente ritualísticas. 
E ocorre-me um verso de João Vário, em ‘Exemplo Maior’: 
Compreendereis que a palavra e o gesto não são campos arados?

11.  Para fortuna nossa, já há marcos muito eloquentes. Arménio Vieira, Germano Almeida, Dina Salústio, José Luís Tavares, Mário Lúcio Sousa, Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte, Filinto Elísio, José Luís Hopffer Almada, José Vicente Lopes... Como já há estudos de natureza académica, no país e no estrangeiro, que largamente contribuem para um maior e melhor conhecimento. Temos, igualmente, contributos decisivos como é o deste Festival de Literatura-Mundo do Sal. E o do Morabeza- Festa do Livro. E o do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. Vamos estando em rede e em diálogo. Em enriquecimento constante, afinal. Muito em particular, mal avisado andará quem ainda não tenha percebido a importância deste Festival de Literatura-Mundo para a afirmação da Literatura cabo-verdiana além-fronteiras nacionais. Mas a importância não é para nós apenas. É magnifico que a Literatura-Mundo possa olhar para si e enriquecer-se a partir desta ilha do Sal! Lá longe no tempo, diziam os nossos maiores que ‘traz de horizonte tem terra-longe’. Hoje, mormente raciocinando como Diplomata, prefiro crer que não há mundo sem as ilhas, que o mundo é mais humano e mais harmonioso quando percebe e apreende e aprende com a especificidade da experiência humana nas ilhas. Felizmente, dessa experiência a Literatura tem sabido ser expressão de elevada grandeza. E lembro-me, por todos, de Derek Walcott e V. S. Naipaul. Ou, cá em casa, de Jorge Barbosa, Corsino Fortes, João Vário, Mário Fonseca, Oswaldo Osório... Atenção: o mundo precisa ‘Veromar’ com Dina Salústio!

12.  Para nós, uma dimensão necessária do mundo é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Falo dos milhões de leitores que existem no seio dela. Não faz nenhum sentido que os livros não tenham a circulação que devem ter e que os nossos Autores sejam tão desconhecidos dentro do próprio espaço comunitário. Permito-me recordar umas palavras que proferi, em Setembro de 2009, ao intervir no Congresso Alemão de Lusitanistas, em Munique:“considerando as expectativas legítimas dos nossos cidadãos em relação ao futuro da CPLP, ganha pertinência a problemática da livre circulação que é, como se sabe, inerente ao exercício da cidadania. Não apenas a circulação das pessoas e do factor trabalho, mas igualmente a de outras dimensões sobremaneira relevantes para a consolidação da Comunidade. Em especial, refiro-me à circulação do conhecimento e à circulação dos bens culturais, a começar pelos produtos bibliográficos e audiovisuais. Trata-se de um domínio em que é possível e necessário fazer muito mais. 
Muito concretamente no que diz respeito ao acesso às obras literárias, vem-me sempre à memória este apelo de David Mourão-Ferreira: ‘Faça-se todo o possível –  mesmo todo o possível impossível – para que os povos de língua portuguesa leiam cada vez mais os autores de língua portuguesa, qualquer que seja a nacionalidade a que pertençam’”. (5)

13.  Tenho por evidente que não se ganha o mundo sem antes ganhar a casa. E, ao dizer isto, devo dar um salto atrás para fazer a ponte com o que há momentos afirmei relativamente àquilo que eram os hábitos de leitura aqui nestas ilhas. Muito diferentemente, somos hoje uma sociedade onde se lê pouco. Cabo Verde continua a ser um meio pequeno, é certo, mas é hoje um meio mais complexo; crescemos de forma acelerada em algumas áreas, outras foram sendo descuradas. Objectivamente. A leitura é um desses domínios em que estamos mal. Muito mal mesmo e é no mínimo contraproducente negar a realidade. Não somos ainda uma sociedade amiga da leitura e não sabemos bem qual deva ser uma eficaz estratégia nacional de sedução para a leitura. Pior ainda: passamos a vida a alimentar embustes. Por exemplo, fazemos estardalhaço com o dinamismo editorial existente e que é real, mas fingimos ignorar que ele não se traduz nem em mais aquisição de livros nem muito menos em mais leitura. A aquisição de material de leitura (livros e em outros formatos) não faz parte dos compromissos financeiros das famílias. Praticamente conhecemos pelos nomes quem compra livros neste país... Sequer os autores cabo-verdianos são devidamente lidos. O ciclo vicioso conta ainda com o contributo dos professores que são os mais empenhados não-leitores. Parece evidente que quem não lê não pode transmitir o gosto pela leitura.  E a verdade é que sem leitores jamais teremos uma real, verdadeiracintura de orgulho nacional pela nossa Literatura. Só se pode ter orgulho por aquilo que se conhece. Amar pressupõe conhecer. Não faz sentido que a Literatura cabo-verdiana seja mais conhecida e apreciada lá fora do que cá, dentro de casa. 
Ainda sob este prisma da leitura, importa ter presente a inexistência de uma sólida ponte com o nosso continente, a África. As obras dos Autores africanos já não chegam com a intensidade com que nos chegaram nos anos posteriores à Independência. No sentido inverso, as dos nossos Autores são desconhecidas nos países irmãos, mesmo nos mais vizinhos, mas isto já nos remete para um outro problema.

14.  Para a Literatura cabo-verdiana, não há mundo sem a Língua Portuguesa.  Na verdade, temos a nosso favor uma língua maravilhosa, pujante e de irradiação global. Amílcar Cabral a ela já se referia como sendo a ‘melhor herança do colonialismo português’... Temos de naturalizar a relação com a Língua  Portuguesa – que é nossa, também nossa. Naturalizar significa assumir como seu, mas significa também melhorar os níveis de desempenho. Os níveis actuais são simplesmente sofríveis, na expressão oral e na escrita. Não vou insistir neste ponto. Sublinho apenas, neste ensejo, a necessidade de os Escritores e Escritoras destas ilhas se fazerem ouvir mais na defesa da Língua Portuguesa. Não raro são omissos. Ora, não basta publicar livros muito bem escritos; é preciso estar no combate pela eliminação deste estado de inclementes maus-tratos infligidos à Língua Portuguesa. 
Concretamente no que concerne à importância da Língua Portuguesa como veículo necessário para a projecção da Literatura Cabo-Verdiana, importa ter presente que não estamos perante fronteiras inflexíveis ou cânones implacáveis. Ou seja, urge não cair na armadilha de uma como que normalidade ou mesmidade linguística para a qual parecem apontar certas récitas, políticas e não só, mais apressadas ou menos ponderadas. Muito diferentemente, tenho que “a língua portuguesa é hoje, e é-o de modo cada vez mais descomplexado, o território comum de vários povos e culturas, a todos cabendo um igual direito de uso ou, se se preferir, de transfiguração criativa. Que é como que diz, o direito a provocar na língua a plasticidade necessária para acomodar e transmitir com autenticidade uma palpitante pluralidade de mundos sociológicos e culturais. Acredito que nisso reside um incontornável factor de enriquecimento e vivacidade da língua portuguesa, da mesma forma que reside a razão do nosso sentimento de pertença a um espaço comum.” (6)

15.  Uma nota final sobre a tradução. Não é nova nem é recente a experiência de verter textos de autores estrangeiros para o crioulo. Mas parece-me que o que tem acontecido recentemente tem uma outra projecção e reveste-se de uma outra intencionalidade, dando um enorme contributo para o processo de nobilitação literária da Língua cabo-verdiana. Refiro-me, em concreto, aos livros ‘Bu More-m’, de José Luís Peixoto, e ‘Bedjus tanbe kre vive’, de Gonçalo M. Tavares. Um grande bem-haja ao Tradutor, Filinto Elísio. Ou seja, também por essa via estamos de velas soltas para a plena cidadania literária do Crioulo. 
Numa outra nota, face da mesma moeda, digo o seguinte: esta nossa Nação crioula jamais partirá inteira para a afirmação na Literatura-Mundo se consigo não estiver a sua marca mais distintiva: a língua cabo-verdiana. Também há Literatura cabo-verdiana produzida e publicada em crioulo! E ao dizer isto estou a vincar que a Literatura cabo-verdiana, quer seja produzida em português ou em crioulo, precisa ser traduzida para outras línguas e, assim, chegar a outros espaços, outros leitores. Com a Língua Portuguesa vamos longe, muito longe, mas não vamos ao mundo todo.

16.  Tal como comecei, vou concluir recordando uma outra Escritora cabo-verdiana: Maria Margarida Mascarenhas. Também ela nos levou pelos caminhos do aprumo literário. Passo a ler um excerto de ‘Viola Partida’, conto de 1974 inserto na colectânea “...Levedando a Ilha”, 1988. Nesse conto a Escritora refere-se à ‘odisseia (verdadeira) de um casal de escravos’ cabo-verdianos nas roças de São Tomé: 
Justina estava grávida quando me veio falar na fuga. Não íamos cumprir o contrato até ao fim. Poderíamos ir para o Congo. Uma das irmãs era francesa e tinha lá conhecimentos.
Pedi-lhe então que aguardasse o nascimento da criança. Além disso íamos precisar de algum dinheiro.
Sempre que adoecíamos cortavam-nos o dia na folha e nada recebíamos. O dinheiro era pouco porque adoecíamos frequentemente. Por isso, Justina retomou o trabalho no dia seguinte ao nascimento da criança. Com um xaile, amarrou o recém-nascido às costas e retomou a tarefa do dia anterior. Recolhia o fruto do café quando, ao segurar melhor uma rama do arbusto, lhe cai em cima um ninho de formigas gigantes. Desvairada com as ferroadas, Justina desnudou-se num instante atirando tudo o que trazia do corpo para o chão. Debateu-se com as formigas até cair exausta. Quando recuperou os sentidos estava a ser assistida pelos companheiros de trabalho. Por momentos olhou apática, sem compreender, mas de repente soltou um grito e desatou a correr.
Mas já era tarde. O corpo quente do recém-nascido tinha sido devorado pelos insectos.”


-  Jorge Tolentino
Conferência proferida no Festival de Literatura-Mundo do Sal, 3ª Edição, 27 a 30 de Junho de 2019.

Notas:
(1)  Arnaldo França, Prefácio à Antologia da Ficção Cabo-Verdiana, Vol. I: Pré-Claridosos, Praia, 2017.
(2), (3) Cfr. Jorge Tolentino, ‘Uma janela para o mundo, Praia, 2017.
(4) Cfr. Jorge Tolentino, ‘Vera Duarte e a Reinvenção do Mar’, Praia, 2018.
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(5), (6) Jorge Tolentino, ‘Tempos de inCertezas’, Praia, 2016, 29 ss.

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