segunda-feira, outubro 13, 2008

De um Golpe de Estado

1. Já o disse noutros ensejos e repito-o agora: não me parece que as dinâmicas e os acontecimentos do nosso continente tenham vindo a merecer, entre nós, o interesse que seria natural e é desejável que suscitassem. Que suscitem, melhor. Mesmo aqueles que relevam do plano estritamente regional. Ainda que próximos, eles são distantes. Fica a sensação de que há um distanciamento voluntário ou, pelo menos, não negado.
Evidentemente que há todo um discurso "correcto" que nos diz contrário. De uns e de outros.
Também é evidente que deve ser lido na sua justa medida o recente périplo do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Cooperação e Comunidades por alguns países nossos vizinhos. Sinal de viragem? Acredito que sim. De resto, e no que às navegações diplomáticas concerne, nunca é tarde para corrigir a mão.
Quem não tenha receio de ter alguma memória, há-de ter presente que o nosso país já teve um muito outro standing na arena africana.
Bem sei que não dispomos de uma cultura ou uma tradição de debate acerca de questões, constantes ou contigenciais, da política internacional. Aqui ou acolá, um disparo isolado na escuridão e pouco mais do que isso.
Dito por inteiro: um ambiente propício a que as ideias não sejam testadas e que haja espaço para voluntarismos onde não deveria haver.
Julgo importante que os Diplomatas crioulos e mais gente interessada por estas matérias desçam para o terreiro do debate de ideias e ajudem a fazer despontar e a alicerçar-se essa tal cultura ou tradição.
Mesmo o apparatus institucional (passe a redundância) da Diplomacia precisa de lufadas de ar fresco vindas das bandas da sociedade em geral.
A mais disso, importa ter presente que, neste mundo de interdependências em que vivemos, só pode ser salutar um ambiente interno de debate franco sobre temáticas globais. E eu que não queria utilizar esta palavra, mas pronto, já está. Escapuliu-se.

2. Naturalmente que não podemos estar indiferentes ao que acontece na nossa vizinhança. E, com isto, estou a referir-me à República Islâmica da Mauritânia e ao Golpe de Estado aí ocorrido no passado dia 6 de Agosto. Um acontecimento de todo em todo contra a corrente. Com efeito, longe já vai a época dos golpes. Mas, a mais disso, o que é que há de preocupante em relação a esse golpe?
Desde logo, isto: um jogo de claro-escuro e de evidente compra do tempo que, no limite, equivale a permitir que, com o passar dos dias, fique a ideia de que, afinal, a intervenção golpista não foi uma coisa assim tão má. Aliás, mais claro neste sentido não poderia ser o recente discurso perante as Nações Unidas pelo Representante Permanente da Mauritânia. «As Forças Armadas não tiveram outra opção», asseverou.
Pois está claro que a União Africana fez o que tinha a fazer ou esteve ao seu alcance fazer: condenou o acto e suspendeu a Mauritânia. E fez exigências. Já se sabe que, diferentemente do que acontecia no tempo em que o sacrossanto princípio da soberania dos Estados membros (da então OUA) interditava a ingerência nos desmandos internos de cada um deles, hoje em dia outras são as regras do jogo e delas decorre a condenação dos golpes. Mas, e daí ? O que é que se segue? No caso presente, há as conversações em curso, mas é o próprio presidente da Comissão da UA, Jean Ping, quem, em entrevista à Jeune Afrique (edição de 21 a 27 de Setembro) tem por improvável o regresso do Presidente da República deposto, Sidi Ould Cheikh Abdallahi (que continua preso), e admite que novas eleições sejam organizadas… pela Junta ora detentora do poder. Seria o caminho para o regresso à normalidade constitucional. Em que termos, quando e a que custos, vá-se lá saber. Ou melhor, conta-se com as conversações nas quais participa uma pluralidade de sujeitos: da UA às Nações Unidas, da Liga Arabe à Francofonia e à União Europeia. Mas é o próprio Conselho para a Paz e Segurança da União Africana que, reunido a nível ministerial, em Nova Ioque, no passado dia 22 de Setembro, reconhece que nenhum progresso tem havido com vista «ao rápido regresso à legalidade constitucional». Pelo que apela aos Estados membros da UA e à comunidade internacional enquanto um todo que rejeitem, «como ilegitimas e ilegais, todas as acções e iniciativas dos autores do golpe de Estado tendentes a obstruir a restauração da ordem constitucional».
Para a resolução desta crise parece claro que a UA joga a cartada da sua própria credibilidade e, em particular, a da eficácia dos princípios que deseja tenham prevalência nessa tal nova Africa que todos desejamos. Sob pena de, ganhando com o correr dos dias, a situação «no terreno» se ir consolidando e gerando as soluções que lhe interessem, tudo conduzindo a um «adquirido» tal como se ainda estivessemos no velho tempo da não-ingerência. Mais coisa, menos coisa.
Certo também que é bastante variada a posição dos países, quando individualmente considerados. Da condenação pura e dura por uma Argélia a uma dita neutralidade de um Marrocos e de uma Tunísia, passando pelo silêncio da Líbia. Compreende-se que o mesmo Jean Ping descarte o recurso a sanções como uma via que conduziria a dividir os membros da UA.
Ou seja, espaço suficiente para que a Junta e o seu chefe, o General Ould Abdelaziz, constituissem governo, o que aconteceu a 1 de Setembro, e logo despachassem o seu Primeiro Ministro, Moulaye Ould Mohamed Laghdaf (até então Embaixador em Bruxelas) para uma missão de explicação e de conquista de simpatias em diferentes capitais.
A União Europeia, essa, não tem estado para meias-medidas: condenação e sanções. A ver vamos até onde é que a mão se manterá dura. Ou seja, aguardemos pelas consultas, de meados de Outubro, para as quais a UE convidou a Junta (o PM, no caso), visando um exame aprofundado da situação criada pelo golpe.
Mas surpreendentes qb e instrutivas em todo este enredo é a abordagem pelo Chefe de Estado desse país vizinho que é o Senegal. Tudo resumido: os golpes são condenáveis mas o Presidente da República deposto terá cometido vários erros (o mais grave: querer despedir, de uma assentada, todos os chefes militares) e como em política os erros pagam-se… Mais: «a Junta Militar está no bom caminho para organizar eleições livres e democráticas que permitirão aos mauritanianos escolher os seus dirigentes ».
Compreende-se a fúria que tal juízo provocou nos cidadãos da Frente Nacional para a Defesa da Democracia. Essa mesma Frente cujas manifestações o PM já anunciou que vai proibir.
Ora bem.
Foi há apenas um ano e meio que a comunidade internacional, países africanos incluídos, se regozijou com a conquista democrática mauritaniana e a eleição de Cheikh Abdallahi para o cargo de Presidente da República. Logo ele foi ungido com os óleos da democracia e festejado na sua terra e além dela. Mas eis que, a modos que de repente, acontece toda esta cambalhota e o que parecia ser, afinal não o era tanto. O certo é que o jogo democrático tem de ser jogado até ao fim e segundo as regras que lhe são próprias. As soluções para os conflitos que surjam têm de existir no próprio quadro democrático-constitucional. Não há lugar para golpes de Estado que possam ser bonzinhos ou assim-assim. Ou golpes que possam ser uma «benção», como alguém já terá dito, neste particular. A Democracia exclui que atrás de cada duna haja um coronel impaciente.

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O texto acima, concluído a 2 de Outubro, foi publicado no jornal A Semana, edição do passado dia 10, sob a epígrafe “Avulsas”.
Ao retomá-lo aqui no blog, devo, em jeito de adenda, fazer menção a alguns desenvolvimentos posteriores.
Antes de mais, a questão do fim do prazo que havia sido fixado pela União Africana para o restabelecimento da normalidade constitucional. Ou seja, o chamado ultimato. Sobre isto, o post que escrevi no dia 7. O chefe da Junta (ou do “Movimento Rectificativo”, como por lá se vai dizendo na linguagem oficial), General Mohamed Abdel Aziz, considera a exigência da UA “irrealista e ilógica” e exclui a possibilidade de “retroceder”.
Entretanto, cidadãos mobilizados, designadamente, em torno da FNDD desafiaram a proibição de manifestações, o que conduziu a confrontos com as Forças da Ordem, vg a Polícia anti-Motim. No essencial, diversas pequenas manifestações. Houve recurso a gás lacrimogéneo. Há quem fale de casos de tortura.
O Presidente da Assembleia Nacional, Messaoud Ould Boulkheir, um oponente ao golpe, dizendo situar-se numa lógica de reconciliação nacional e buscando uma solução “sem vencidos nem vencedores”, defende o regresso ao poder (por um período determinado) do Presidente da República deposto, sendo que a este caberia (1) supervisionar a organização de eleições presidenciais antecipadas e (2) a formação de um governo de consenso encarregado de organizar as ditas eleições. Mais defende a necessidade de um dispositivo que acautele o futuro dos membros da Junta.
Uma outra via, ao que parece próxima do Coronel El Ould Mohamed Vall (que liderou a transição até às primeiras eleições democráticas, em 2007), exclui tanto a participação do presidente encarcerado como a dos militares.
Os parlamentares afectos à FNDD dizem-se abertos ao diálogo, embora colocando sempre como ponto incontornável o regresso do primeiro presidente democraticamente eleito, Sidi Ould Cheikh Abdallahi.
E é um pouco isto a situação. De impasse. Importa não excluir capítulos ainda menos agradáveis.
Um mau sinal, para já, é a corrida para julgar os chamados “erros” do presidente deposto, tendo-se agora chamado para presidir a instância competente para o efeito (o Supremo Tribunal de Justiça) o Advogado Mohamed Ould Maham, conhecido apoiante da Junta.
Outrossim, um fait divers a que não se pode deixar de fazer referência são as declarações hoje proferidas, na capital mauritaniana, pelo presidente do “Observatoire International des Droits de l`Homme”, Touré Moustafa. “Não há golpe de Estado. Foi o povo que decidiu mudar de presidente”, sentencia ele, à saída de um encontro com o chefe da Junta. E explica-se: “Quando há golpes de Estado, há mortes, ouvem-se disparos. Ora, aqui não há nada disto. As instituições funcionam normalmente e não há presos políticos.” E acrescenta mais estas: “Estamos satisfeitos com a nossa visita à Mauritânia. Não há problema algum. Os Direitos do Homem são inteiramente respeitados”.
Completando o juízo do seu companheiro de missão, o Secretário Geral do mesmo Observatório elabora o seguinte: “Direitos do Homem são também o respeito pela soberania, o respeito pelas instituições. É, no minimo, deixar que os mauritanianos regulem os seus problemas internos”. Pelo que não deve haver uma “internacionalização do que se passa na mauritânia”, pois que “um dos eixos fundamentais dos Direitos do Homem é a liberdade e a soberania, a independência e a autonomia”.
Ora pois. Caso para dizer: o Observatório precisa, com urgência, de um... observatório.
Seja como for, já vai sendo tempo de ouvir algo mais lá das bandas de Addis Abeba.
Por último, é sintomático que a chamada crise mauritaniana (quase) não mereça espaço nas pautas das grandes cadeias de informação.
Créditos pela imagem: Reuters.

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