quinta-feira, dezembro 01, 2016

Nos 20 anos da CPLP: um olhar crítico






Para benefício de inventário, publico aqui o registo da intervenção que fiz no colóquio CPLP: 20 Anos de história e na história - Refletindo sobre a Organização” promovido pelo IILP, na Praia, a 4 de Agosto de 2016.
Tal registo foi, pouco depois, publicado no jornal “A Nação”, edição de 26 de Agosto.


1.   Penso que estamos todos de parabéns por podermos comemorar os vinte anos da CPLP.
Queira-se ou não, trata-se de uma organização que é já não apenas um património quanto sobretudo um motivo de orgulho para os nossos povos e países.
Estes vinte anos escorreram num ápice. É verdade. Pessoalmente, ainda me lembro da primeira visita do Embaixador Aparecido de Oliveira e do entusiasmo com que ele apresentou e defendeu o projecto da Comunidade. Enquanto Conselheiro Diplomático do Presidente Mascarenhas Monteiro, coube-me acompanhá-lo na audiência que concedeu a esse distinto Enviado brasileiro. De lá para hoje, tenho podido, a diferentes títulos, interessar-me pela nossa Comunidade e pelas questões que a têm animado ao longo deste tempo.
O que vos direi de seguida é apenas, por conseguinte, um registo da parte de um observador. Apenas isso.

2.   Na vida de uma instituição, mormente de uma organização internacional, duas décadas é um curto lapso de tempo. De todo o modo, importa ser justo e reconhecer, ou melhor, congratular-se com o facto de o percurso da CPLP ser um percurso notável. Os ganhos são evidentes, parece-me.
Dentre eles, um destaca-se prontamente: o enorme capital de prestígio de que a Comunidade goza na arena internacional, algo que não surge por mera fortuna, antes foi sendo granjeado por e com aturado trabalho.
Digo trabalho aturado, mas estou a dizer pouco. Trabalho entusiástico também. Justamente porque desde sempre, desde a hora zero, a CPLP foi entendida como uma Comunidade de afectos. A mais de todas as razões que conduziram à sua criação, os afectos. Não se queira subestimar este dado. Seguramente que tem sido ele a ajudar a encontrar o caminho em momentos menos bons. A facilidade para falar com franqueza, o desejo de, conjuntamente, superar escolhos, a determinação de sermos mais e melhor Comunidade, o sentir-se grato por estarmos juntos. Estamos perante um dado altamente diferenciador em relação a outras organizações de algum modo similares. Estamos numa organização em que não nos contentamos com a frieza dos planos e metas e com o rigor dos balanços. Há algo mais.

3.   Terá este caminho já percorrido pela CPLP sido isento de erros ou insuficiências? Com certeza que não. E reside aqui o nó da questão que me parece relevante. Ou seja, importa avaliar esse percurso para podermos abalançar ao seguinte: para onde queremos ir? Até onde podemos ir?

4.   Desde logo, urge conceder toda a atenção ao direito de pertença. Não basta proclamar uma Comunidade de países e povos, eventualmente até empenhar-se para que ela seja cada vez mais de Povos e menos de Estados, como vai sendo corrente dizer-se. Isso é necessário, mas claramente não é suficiente. Creio que é fundamental, melhor, é vital que em cada um dos Estados-membros a CPLP ganhe o coração dos cidadãos e estes cada vez mais a sintam como coisa sua. Temos de ter a serenidade para reconhecer que há uma distância a superar neste particular; uma distância que tem tanto de desconhecimento quanto de indiferença. Isto é evidente que conhece níveis variados em cada um dos nossos países. De todo o modo, julgo que existem, no seio das sociedades civis respectivas, uma pluralidade de organizações que podem e devem ser chamadas para um trabalho organizado, sistemático, sem pressas, no sentido de fazer com que todos e cada um dos cidadãos desta Comunidade de milhões se sintam verdadeiramente parte dela. Até esse ponto temos de poder ir.

5.   Nesta perspectiva, há um ponto que tem de ser sublinhado e é o seguinte: a ideia de Cidadão da CPLP tem de ser assumida, sob pena de ficar a sensação de estarmos como que a deixar a conversa a meio. Cabo Verde, desde há muitos anos, deu o seu contributo para o bom entendimento desta matéria, justamente ao aprovar o Estatuto do Cidadão Lusófono. Julgo que tem faltado uma forte vontade política para avançar no sentido de, pelo menos, a definição de um conteúdo mínimo de direitos no espaço da Comunidade.

6.   Na mesma linha, devo referir uma outra, ou nem tanto outra questão que é a da livre circulação. Circulação de pessoas, cidadãos da Comunidade, mas também circulação de bens, a começar pelos bens culturais e o conhecimento. Neste mundo cada vez mais interconectado, é simplesmente indefensável que, dentro desta nossa Comunidade, persistam tantas barreiras, por exemplo, no acesso aos bens culturais produzidos num ou noutro dos nossos países. Deste ponto de vista, estamos distantes uns dos outros, pesem embora feiras e iniciativas parecidas de sabor sazonal. A Comunidade não pode teimar no erro de consentir o desconhecimento dos Autores de Língua portuguesa. Objectivamente. Quantos, no espaço da Comunidade, conheciam Raduan Nassar, o mais recente Prémio Camões? Mais grave ainda, quantos passaram a conhecer a obra dele depois da atribuição de tão prestigiado prémio? E isto é só um exemplo. Parece que está anestesiada a nossa aptidão para nos incomodarmos com tais situações. Ou seja, falta um quadro normativo e, antes dele, a necessária determinação política que propicie aos cidadãos da Comunidade a fruição dos bens culturais no seio dela produzidos. É urgente naturalizar o acesso às obras dos nossos autores e criadores artístico-culturais.

7.   Evidentemente que, neste ponto, o olhar cai sobre um tema incontornável que é o da Língua Portuguesa. Ela é o nosso capital mais valioso. Desde logo porque é o veículo de comunicação e criação de mais de 200 milhões de falantes e, no espaço da Comunidade, o vínculo mais duradouro e com inegável margem de crescimento e fortalecimento. Repito: o capital mais precioso. E pergunto: estamos a ser coerentes nesta matéria? É a língua verdadeiramente um eixo sonante no dia a dia da Comunidade? Evidentemente que não estou a referir-me às proclamações; falo do que acontece (ou não) no quotidiano. Julgo que a língua é tratada como assunto secundário. Objectivamente. É só ver a situação do IILP, situação essa repetidamente descrita, ano após ano. Com efeito, o diagnóstico é de há muito conhecido mas o tratamento tem sido adiado. O que é prova de que algo não vai bem. Ou muito me engano ou, estivéssemos a agir com coerência, e essa instituição central para a política da língua na Comunidade, refiro-me ao IILP, teria efectiva prioridade na agenda. Todos sabemos que tal não tem sido o caso. Certo, certo é o seguinte: para que o IILP cumpra o seu fundamental papel é necessário que haja um real investimento. Falo de meios, humanos e outros, mas falo sobretudo de uma decidida aposta na sua valorização institucional e na sua projecção no dia a dia da Comunidade. Penso que se esteve bem no momento da criação e da fixação do mandato. Mas a verdade é que algo se tem perdido ao longo do caminho.

8.   Ao dizer isto, estou a abeirar-me de uma problemática candente no seio da CPLP. Uma deficiência, se se preferir. Estou a fazer referência a uma frequente ausência de coerência entre o discurso e a prática. Ou seja, a falta de sequência e consequência entre um momento e o outro. Ela não é deliberada e nem o poderia ser. Mas que um tal contexto prejudica o cumprimento das missões da Organização, lá isso ninguém pode negar. Por vezes são adiamentos sucessivos de algo que todavia se declarou ser prioritário; outras vezes trata-se de diferenciada assunção do que seja importante ou prioritário. Ora bem. É evidente que, enquanto organização interestadual, a CPLP não vive por si ou, releve-se a expressão, em piloto-automático senão que ela depende da vontade dos Estados que a compõem. É esta vontade que nem sempre é claramente perceptível no que ao cumprimento das prioridades na agenda diz respeito. Não raro, a sensação que fica é a de que, antes da CPLP, existem outros engajamentos ou quefazeres mais importantes ou mais instantes ou mais momentosos. Para uma organização de pares, de iguais isto é mau. Sem querer pedir ou esperar demasiado, parece-me que a próxima Cimeira, quando quer que ela se realize, deveria poder emitir uma mensagem quase que re-fundacional. Não necessariamente pelo que decida sobre a chamada Nova Visão Estratégica da CPLP, mas mais pela coragem de avançar para uma necessária re-centragem. Tem-se de poder saber onde é que organização tem de estar; o que é que lhe é efectivamente vital realizar; saber onde é que ela é quem faz a diferença, decididamente.

9.   E com certeza que não podemos contornar o problema do financiamento da CPLP. Não é desejável que se ponha mais carga na carroça enquanto não nos entendermos sobre a capacidade de mobilizar recursos adicionais ou, pelo menos, sobre a realização pontual dos engajamentos financeiros de uns e de outros. Mas mais do que isso: temos de poder economizar ou agir mais à medida das capacidades da organização. E dos seus membros. Lembro-me que, ainda Ministro das Relações Exteriores, defendi, perante o Conselho de Ministros  realizado em Lisboa em Março último, que não tínhamos de prolongar, a duras penas financeiras, a representação na Guiné-Bissau. Que não temos de criar e perpetuar mecanismos para os quais os recursos, ainda que anunciados, não se concretizam. Que não estávamos obrigados a fazer exactamente como fazem outras organizações claramente dotadas de mais meios. Continuo a entender da mesma forma.
Outrossim, quer parecer-me que urge visitar a arquitectura das chamadas reuniões estatutárias. Reavaliá-la.  Mesmo do lado dos Estados-membros fica penoso acompanhar a roda-viva das reuniões. No caso de Cabo Verde, isto é evidente. Por exemplo, sempre defendi que as ministeriais na área da Defesa deveriam ser mais espaçadas, concedendo-se assim mais tempo e mais responsabilização às instâncias técnicas. Mais ainda, temos defendido que se recorra mais à sede da organização para um bom número de reuniões. Sobretudo quando, neste contexto geral de dificuldades, temos todavia de poder levar tão longe quanto pudermos todo o trabalho, já em curso, em domínios fundamentais e candentes na Agenda Global, como são os casos do Ambiente, incluindo a problemática dos Oceanos, da Energia, das TIC e da sociedade do conhecimento, bem como, com certeza, o da Segurança, maxime segurança marítima e cibersegurança.
Pergunto-me, e estou a tocar no caso de Cabo Verde, se não é chegada a hora de avaliar o modelo de articulação e seguimento das questões que ocupam a CPLP. Tenho que seria proveitoso um outro estatuto nos fluxos institucionais internos, com benefício, desde logo, para a capacidade de comunicar com e de municiar a Representação em Lisboa.

10.                No quadro de uma tal re-centragem, um domínio claramente urgente é o da Democracia, Direitos Humanos e Cidadania no espaço da Comunidade. Não é aceitável nem é salutar que tais questões, que estão na essência mesma do Estado de Direito Democrático, sejam percebidas e vividas com variações ou em regime de conveniência. A ideia de Democracia, a dos Direitos Humanos e a da Cidadania têm de ser enraizadas e vividas por inteiro em todo o espaço da Comunidade, o que significa que há ainda muito trabalho a fazer. Não podemos sequer correr o risco de complacência ou desfalecimento nesta matéria. Moçambique é inegavelmente motivo de preocupação pela forma como a situação interna tem evoluído, com prejuízos relevantes desde logo no plano da paz e estabilidade. E trata-se de um Estado-membro da CPLP. Como também o é a Guiné-Bissau que, aliás, de há muito persiste em estar num plano inclinado de delapidação de valores como a funcionalidade do Estado, a confiabilidade das instituições, a credibilidade dos sujeitos políticos.
E a questão de fundo é: até onde pode a CPLP permitir-se assistir ao esboroamento de valores que dão sustento à sua própria carta identitária?
Repito: são valores para ser vividos em todo o espaço da Comunidade. Não são meras proclamações.
Penso que estamos perante um verdadeiro teste à eficácia, senão mesmo à utilidade da CPLP nesta frente. Pois que as suas acções, em se tratando dos seus Estados-membros, têm de produzir resultados.
Julgo que a própria ideia de Comunidade de afectos impõem que, em todas as circunstâncias, devamos falar com franqueza.
Ao dizer isto quero sublinhar que é urgente que, no interesse da Comunidade, seja consolidada a capacidade de análise e projecção nos domínios político-diplomático e da paz e estabilidade. Não necessariamente pela via de vínculos contratuais estáveis mas também com recurso a competências que seguramente existem em todos os Estados-membros.
Particularmente no que diz respeito à Guiné-Bissau, a CPLP devia assumi-la como o seu caso prioritário e, em coerência (a tal coerência), tudo fazer, em todos as frentes da arena internacional, para provocar os resultados que tardam. Tal como na vida das pessoas, também as instituições enfrentam momentos em que têm de (per)correr a légua da ousadia...

11.                E é com esta nota que concluo o meu contributo a este acto que assinala o vigésimo aniversário da CPLP. Possa ela, com o entusiasmo e o querer de todos nós, continuar a fortalecer-se e a ser cada vez mais Comunidade!

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