Várzea do nosso orgulho
O Estádio da Várzea terá registado, na tarde do dia 4 de Junho de 2005, o seu momento mais alto até agora. Neste particular, falo de eventos desportivos e apenas deles, naturalmente. E falo, primeiro, da extraordinária adesão das pessoas, cada uma com o seu particular grau de ligação às coisas do futebol, e, segundo, da forma e intensidade como a “torcida nacional” acreditou. A Várzea estava deveras bonita de se ver e viver. Basofona propi. Cores, sons, emoção, um leque de ingredientes que traduziam um como que desígnio.
Se puder fazer algum recurso às minhas referências, lembro-me da grande movimentação havida aquando da realização da Copa Cabral aqui em Cabo Verde. Isso nos arrancos dos anos oitenta, tinha este nosso país escassa meia dúzia de anos de existência. Era a primeira vez que uma competição desse jaez ocorria nestas ilhas. Claro está que isso mexeu com as pessoas, com os desportistas desde logo.
A Várzea não era então aquilo que é hoje. Nem de longe. E estou a falar de toda aquela zona; não apenas do estádio. Só uns anos depois é que seria rasgada a Avenida Cidade de Lisboa e construídos edifícios actualmente emblemáticos, tal os casos do Palácio do Governo, da Biblioteca Nacional, do Auditório Nacional. O próprio Gimno ainda não existia.Ou seja, estava por acontecer um conjunto de edificações, públicas e privadas, e de intervenções que foram mudando a traça dessa importante parcela da cidade. Sem esquecer a pavimentação, a iluminação pública, as soluções para a drenagem das águas pluviais... Naquela época a Várzea ainda chegava a boiar.
Inaugurou-se nessa ocasião um grande “avanço”: as bancadas metálicas. Aquilo gingava que era um consolo. O campo, esse, era o peladão. Orgulhosamente castanho. E oficial, oficialíssimo até dizer chega. O horizonte do verde era aquele rectângulo na bandeira nacional. Isto para dizer que o espírito da época era outro. As motivações também. E as condições, claro está. Quem não conseguiu ir ver os jogos dessa Copa a que me refiro, lá se contentou com os relatos radiofónicos, porventura escutados através de um já periclitante receptorzinho Grundig. Quem estaria aos microfones? Por certo o Luís Carlos Vasconcelos (Cânfora), o Carrilho... Quem mais? Seguramente um outro dos veteranos dessa respeitabilíssima casa que é a Rádio de Cabo Verde. Muitos prosseguem as lides aqui na terra, outros estão labutando aí por esse mundo mais largo.
Eu consegui, felizmente, ir ao campo. Aliás, vale a pena recordar e registar que o então Ministro da Educação, Cultura e Desportos, o saudoso Dr. José Araújo, teve a belíssima lembrança de oferecer bilhetes a esses que então éramos finalistas do Liceu Domingos Ramos, por sinal um dos dois liceus existentes no país. Naquele tempo. Actualmente, será complicado para um ministro oferecer bilhetes “aos” finalistas. Mesmo que esse governante tenha inegável espírito desportista e se chame, por exemplo, Júlio Correia, ele também “setemanista” nesse ano a que faço referência. Mas, palavra puxa palavra, não posso deixar de mencionar um outro colega finalista que, sendo jogador da Selecção de Cabo Verde, viria a ser eleito o Melhor Jogador desse Torneio Amílcar Cabral. Estou, já se vê, a referir-me a Inácio Carvalho (Bala), hoje Director Geral dos Desportos. Penso que ele é o único, até agora, a conseguir esse feito nesta nossa região desportiva.
Mas retomo o fio à meada. De facto, na tarde do passado dia 4, Cabo Verde acreditou que a sua Selecção de Futebol poderia arrebatar a vitória no decisivo jogo com a Selecção da África do Sul. Poderia. Mas não pôde. Não conseguiu. O que em nada desdoura a grandeza dessa tarde de futebol, dessa tarde de desporto. Faltou um bom resultado, é certo, mas não foi porque tivesse faltado garra ao combinado nacional ou porque o adversário trouxesse uma inultrapassável supremacia. Aliás, já em Bloomfontein, em Junho de 2004, no jogo da primeira mão, o qual tive o prazer de assistir, a equipa cabo-verdiana tinha feito vincar o seu gabarito, o que lhe valeu o respeito do público e elogios por parte da imprensa especializada local. De resto, quem tenha vindo a seguir este processo há de ter reparado que os encómios à equipa nacional têm sido registados mais no estrangeiro do que aqui dentro de casa. O que é um toque muito nosso, convenhamos. Somos sempre mais lestos a descrer, a torcer o nariz.
Com certeza que terá havido aspectos menos bons, o que é normal na organização e no decorrer de um evento que adquire alguma complexidade neste país ainda de recursos limitados. Lá se conseguiu dar um jeito ao relvado, mas parece que já não houve como cuidar dos balneários, por exemplo. O que de algum modo nos diz que o nível da agenda desportiva (não apenas a do futebol) já é superior às capacidades internas mobilizadas. É um facto. Não interessa assacar culpas, pois isto é absolutamente irrelevante. O importante é não ser destrutivo nas apreciações. Mais importante ainda é que “quem de direito” (expressão bárbara de que se gosta muito neste país) tire as lições que haja a tirar, com humildade. E “quem com direito a juntar a sua quota-parte” somos todos nós. Não há como tirar o corpo de fora. Está em causa a infraestruturação desportiva, é verdade, mas igualmente uma variedade de valências que fazem o dia a dia do desporto, desde a formação aos equipamentos (melhor, à escassez deles). Julgo que ainda não se está a tirar todo o partido dos mecanismos do mecenato.
De todo o modo, é marcante a forma como os cabo-verdianos finalmente se uniram em torno da sua Selecção Nacional de Futebol. Finalmente, sim. Com efeito, a campanha a favor da equipa nacional teve o seu arranque oficial em finais de Janeiro de 2004, mas acontece que só agora, neste troço antes do embate com os Bafana-Bafana, é que a corrente verdadeiramente passou. Nunca é tarde e é bom, é mesmo muito bom que tenha passado com a intensidade com que passou. Porque a Selecção vai continuar a precisar desse apoio, desse calor. Há mais jogos ainda a disputar. A caminhada segue em frente e o suporte de incentivo e entusiasmo não pode faltar. É fundamental significar o nosso apreço à FCF e ao seu presidente, ao Prof. Alexandre Alhinho e toda a equipa técnica, aos jogadores, todos eles, bem como a todo o staff de apoio.
Apreciei imenso o momento em que a equipa de arbitragem foi brindada com uma salva de palmas quando, concluída a partida, já abandonava o recinto. Foi um grande momento dessa tarde de desporto. Dele certamente não se esquecerão esses “homens do apito” que vieram de outros países, antes irão dar notícia noutras paragens. Não foi seguramente em vão que o imponente estandarte de fair play da FIFA entrou no rectângulo da Várzea. Digo melhor: esse estandarte ficou mais enriquecido.
Oxalá a sorte esteja do nosso lado nos próximos embates, desde logo em Kampala, já no dia 18 deste mês. Mas, como quer que seja, a selecção cabo-verdiana de futebol está já lançada na alta-roda das competições internacionais. Com dignidade e merecendo todo o respeito. Isto parece que ninguém nega. Muito menos quem tenha estado na Várzea, nessa inesquecível tarde do passado dia 4 de Junho.
Para benefício de inventário.
Este texto foi publicado, em Junho de 2005, no Suplemento “Lance”, in edição 717 do jornal “A Semana”.
O Estádio da Várzea terá registado, na tarde do dia 4 de Junho de 2005, o seu momento mais alto até agora. Neste particular, falo de eventos desportivos e apenas deles, naturalmente. E falo, primeiro, da extraordinária adesão das pessoas, cada uma com o seu particular grau de ligação às coisas do futebol, e, segundo, da forma e intensidade como a “torcida nacional” acreditou. A Várzea estava deveras bonita de se ver e viver. Basofona propi. Cores, sons, emoção, um leque de ingredientes que traduziam um como que desígnio.
Se puder fazer algum recurso às minhas referências, lembro-me da grande movimentação havida aquando da realização da Copa Cabral aqui em Cabo Verde. Isso nos arrancos dos anos oitenta, tinha este nosso país escassa meia dúzia de anos de existência. Era a primeira vez que uma competição desse jaez ocorria nestas ilhas. Claro está que isso mexeu com as pessoas, com os desportistas desde logo.
A Várzea não era então aquilo que é hoje. Nem de longe. E estou a falar de toda aquela zona; não apenas do estádio. Só uns anos depois é que seria rasgada a Avenida Cidade de Lisboa e construídos edifícios actualmente emblemáticos, tal os casos do Palácio do Governo, da Biblioteca Nacional, do Auditório Nacional. O próprio Gimno ainda não existia.Ou seja, estava por acontecer um conjunto de edificações, públicas e privadas, e de intervenções que foram mudando a traça dessa importante parcela da cidade. Sem esquecer a pavimentação, a iluminação pública, as soluções para a drenagem das águas pluviais... Naquela época a Várzea ainda chegava a boiar.
Inaugurou-se nessa ocasião um grande “avanço”: as bancadas metálicas. Aquilo gingava que era um consolo. O campo, esse, era o peladão. Orgulhosamente castanho. E oficial, oficialíssimo até dizer chega. O horizonte do verde era aquele rectângulo na bandeira nacional. Isto para dizer que o espírito da época era outro. As motivações também. E as condições, claro está. Quem não conseguiu ir ver os jogos dessa Copa a que me refiro, lá se contentou com os relatos radiofónicos, porventura escutados através de um já periclitante receptorzinho Grundig. Quem estaria aos microfones? Por certo o Luís Carlos Vasconcelos (Cânfora), o Carrilho... Quem mais? Seguramente um outro dos veteranos dessa respeitabilíssima casa que é a Rádio de Cabo Verde. Muitos prosseguem as lides aqui na terra, outros estão labutando aí por esse mundo mais largo.
Eu consegui, felizmente, ir ao campo. Aliás, vale a pena recordar e registar que o então Ministro da Educação, Cultura e Desportos, o saudoso Dr. José Araújo, teve a belíssima lembrança de oferecer bilhetes a esses que então éramos finalistas do Liceu Domingos Ramos, por sinal um dos dois liceus existentes no país. Naquele tempo. Actualmente, será complicado para um ministro oferecer bilhetes “aos” finalistas. Mesmo que esse governante tenha inegável espírito desportista e se chame, por exemplo, Júlio Correia, ele também “setemanista” nesse ano a que faço referência. Mas, palavra puxa palavra, não posso deixar de mencionar um outro colega finalista que, sendo jogador da Selecção de Cabo Verde, viria a ser eleito o Melhor Jogador desse Torneio Amílcar Cabral. Estou, já se vê, a referir-me a Inácio Carvalho (Bala), hoje Director Geral dos Desportos. Penso que ele é o único, até agora, a conseguir esse feito nesta nossa região desportiva.
Mas retomo o fio à meada. De facto, na tarde do passado dia 4, Cabo Verde acreditou que a sua Selecção de Futebol poderia arrebatar a vitória no decisivo jogo com a Selecção da África do Sul. Poderia. Mas não pôde. Não conseguiu. O que em nada desdoura a grandeza dessa tarde de futebol, dessa tarde de desporto. Faltou um bom resultado, é certo, mas não foi porque tivesse faltado garra ao combinado nacional ou porque o adversário trouxesse uma inultrapassável supremacia. Aliás, já em Bloomfontein, em Junho de 2004, no jogo da primeira mão, o qual tive o prazer de assistir, a equipa cabo-verdiana tinha feito vincar o seu gabarito, o que lhe valeu o respeito do público e elogios por parte da imprensa especializada local. De resto, quem tenha vindo a seguir este processo há de ter reparado que os encómios à equipa nacional têm sido registados mais no estrangeiro do que aqui dentro de casa. O que é um toque muito nosso, convenhamos. Somos sempre mais lestos a descrer, a torcer o nariz.
Com certeza que terá havido aspectos menos bons, o que é normal na organização e no decorrer de um evento que adquire alguma complexidade neste país ainda de recursos limitados. Lá se conseguiu dar um jeito ao relvado, mas parece que já não houve como cuidar dos balneários, por exemplo. O que de algum modo nos diz que o nível da agenda desportiva (não apenas a do futebol) já é superior às capacidades internas mobilizadas. É um facto. Não interessa assacar culpas, pois isto é absolutamente irrelevante. O importante é não ser destrutivo nas apreciações. Mais importante ainda é que “quem de direito” (expressão bárbara de que se gosta muito neste país) tire as lições que haja a tirar, com humildade. E “quem com direito a juntar a sua quota-parte” somos todos nós. Não há como tirar o corpo de fora. Está em causa a infraestruturação desportiva, é verdade, mas igualmente uma variedade de valências que fazem o dia a dia do desporto, desde a formação aos equipamentos (melhor, à escassez deles). Julgo que ainda não se está a tirar todo o partido dos mecanismos do mecenato.
De todo o modo, é marcante a forma como os cabo-verdianos finalmente se uniram em torno da sua Selecção Nacional de Futebol. Finalmente, sim. Com efeito, a campanha a favor da equipa nacional teve o seu arranque oficial em finais de Janeiro de 2004, mas acontece que só agora, neste troço antes do embate com os Bafana-Bafana, é que a corrente verdadeiramente passou. Nunca é tarde e é bom, é mesmo muito bom que tenha passado com a intensidade com que passou. Porque a Selecção vai continuar a precisar desse apoio, desse calor. Há mais jogos ainda a disputar. A caminhada segue em frente e o suporte de incentivo e entusiasmo não pode faltar. É fundamental significar o nosso apreço à FCF e ao seu presidente, ao Prof. Alexandre Alhinho e toda a equipa técnica, aos jogadores, todos eles, bem como a todo o staff de apoio.
Apreciei imenso o momento em que a equipa de arbitragem foi brindada com uma salva de palmas quando, concluída a partida, já abandonava o recinto. Foi um grande momento dessa tarde de desporto. Dele certamente não se esquecerão esses “homens do apito” que vieram de outros países, antes irão dar notícia noutras paragens. Não foi seguramente em vão que o imponente estandarte de fair play da FIFA entrou no rectângulo da Várzea. Digo melhor: esse estandarte ficou mais enriquecido.
Oxalá a sorte esteja do nosso lado nos próximos embates, desde logo em Kampala, já no dia 18 deste mês. Mas, como quer que seja, a selecção cabo-verdiana de futebol está já lançada na alta-roda das competições internacionais. Com dignidade e merecendo todo o respeito. Isto parece que ninguém nega. Muito menos quem tenha estado na Várzea, nessa inesquecível tarde do passado dia 4 de Junho.
Para benefício de inventário.
Este texto foi publicado, em Junho de 2005, no Suplemento “Lance”, in edição 717 do jornal “A Semana”.
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