segunda-feira, maio 12, 2008

Migrantes

Acerca da circulação de pessoas

Que há oásis, há!


1. Em texto recentemente publicado no sempre impecável jornal El Pais, escreve Felipe Gonzalez, com acerto e eloquência, o seguinte: «A articulaçao de um sistema democrático baseia-se na cidadania enquanto elemento definidor do direito de pertença, ao qual não se pode antepor nenhum outro». Conquanto as reflexões dessa figura de nomeada da esquerda democrática e antigo presidente do Governo espanhol (1) fossem alinhadas a um muito outro propósito, elas saem-me agora ao caminho quando procuro regressar a algumas linhas de raciocínio sobre a problemática das migrações e, muito concretamente, sobre os contornos que as mesmas vêm assumindo nos dias de hoje. E estou a referir-me às «migrações anárquicas», utilizando aqui assim a expressão de Sami Nair.

2. Por certo que a palavra cidadania pouco ou nada significa para quem se atira à morte para fugir dela. Que é este o drama desses muitos seres humanos, gente desta nossa região oeste-africana, que se lançam aos magotes para dentro de fragilíssimas pirogas de repente sentidas como pontes para a esperança, a última seguramente, qualquer que ela seja. Basta ver o vazio que as câmaras de televisão surpreendem nos seus olhares. Este drama não é novo nem é surpreendente nem é repentino, pelo que não há que fingir surpresa. Variando embora a natureza e a intensidade das motivações (das causas, melhor), exemplos não têm faltando na história da humanidade, mormente nos períodos mais recentes. O conflito no Vietnam e o fenómeno dos boat people, a fuga de albaneses para a Itália, o drama na fronteira entre os Estados Unidos e o México, a pungente realidade que são os milhares de refugiados e deslocados um pouco por toda a Africa, os hiper-noticiados «espectáculos» em Ceuta e Melilla. Não se perca de vista que aqueles que logram chegar à soleira da porta da Europa são apenas poucos quando comparados com esses tantos muitos que perdem a vida no caminho (toda a gente tem por impossível determinar o número de afogados) ou já nos pontos de origem. De 2002 a 2005 chegaram às Canárias mais de 32 mil pessoas, nessas condições. Entre Janeiro e Abril deste ano chegaram cerca de quatro mil. José Miguel Ruano, governante desse arquipélago vizinho do nosso e personalidade distinta que tive o ensejo de conhecer quando ele respondia pelas pastas da Cultura e dos Desportos, abordando este problema, avança ponderações que importa aqui recuperar, com a devida vénia: «Não somos nem nunca fomos um povo xenófobo; pelo contrário, somos um povo acolhedor. Mas a nossa capacidade está ultrapassada. Temos um território limitado de 7500 km2, com uns 40% em espaços protegidos (parques del Teide, Timanfaya e outros). A população legal das Canárias ronda os dois milhões de pessoas, recebemos 12 milhões de turistas por ano e o número de residentes cresce anualmente em mais de 50 mil; destes, apenas 6.500 por aumento vegetativo (diferença entre nascimentos e falecimentos). Assim não podemos continuar».

3. Sempre houve a procura de um Far West. Nunca, é certo, essa procura foi tão dramática quanto é hoje. Um pouco por todo o lado, vai crescendo a consciência que se está perante um problema que tem de ser seriamente encarado. Ainda não se sabe bem como. Particularmente nos países tradicionalmente de acolhimento, os dossiers da imigração e da integração são simplesmente inadiáveis. Recentemente, a França teve de ouvir isso de forma dolorosa. Resta ver as evoluções quanto à proposta de lei Sarkosy. Outra proposta legislativa cuja sorte interessa seguir é essa que, nos Estados Unidos, país por excelência de imigrantes, tem levado a manifestaçoes de rua autênticos mares de gente, na sua maioria os chamados sin papeles. No caso da Alemanha, que não é de somenos, por certo que sairão contributos relevantes da Cimeira da Integração prevista para ter lugar em Berlim, em Julho próximo. Desde já, espera-se um novo conceito de integração e pistas para uma política global na matéria. No interesse de pistas para reflexão, importa ter em conta isto: dentro do espaço da própria União Europeia, há Estados que ainda não aderiram na plenitude ao princípio da livre circulação. Sequer haverá nisto egoísmo colectivo erigido em politica de Estado; porventura medo e auto-protecção, o que vem a dar ao mesmo. Entretanto, na sociedade fervilham os nichos de fenómenos tão perniciosos como a xenofobia e os nacionalismos com apetência para a irracionalidade e a violência. Veja-se que, por exemplo, os actos violentos relacionados com a Extrema Direita tiveram, na Alemanha, um aumento de 20% , isto em 2005 apenas.

4. Já num livrito publicado em 1999, insurgia-me contra a lógica das muralhas. Continuo a entender que as soluções duradouras, ou seja, com sentido de futuro, nunca devem basear-se na exclusão. O chamado isolacionismo responde à lógica do ganho imediato ou, prefiro dizer assim, da perda a termo. Parece-me que a razão última da busca de soluções é, deve ser, a intrínseca dignidade humana que é comum a todas as pessoas. Não há futuro sem «o outro». Agora, como desde o tempo das cavernas mais longínquas, a alteridade é o sentido incontornável da mesmidade. Infelizmente, a lógica das muralhas é a mesma que ecoa, refractária é certo, nas abordagens que agora chegam pelo ângulo da segurança. Há quem fale de «problemática securitária», (2) mal escondendo o desejo de comprimir nesta fórmula unidimensional problemas bem mais intrincados.

5. Mesmo desde o ângulo da questão da qual estou a querer aqui acercar-me, a região em que Cabo Verde está inserido é uma das mais problemáticas do mundo. A pobreza e a exclusão social são reais. Há conflitos que persistem. Os índices de escolaridade (19% no Mali, 37% na Gâmbia) e de esperança de vida são confrangedoramente baixos. O valor da estabilidade tarda a ser um dado assente. Há a persistência do subdesenvolvimento (3) ou, por outras palavras, o mal do «subdesenvolvimento sustentado», como diz Josep M. Colomer, quem defende que, para muitos países africanos e latino-americanos, estas que são já décadas de democracia não trouxeram mais desenvolvimento, senão que mais liberdade para protestar e para emigrar. Como quer que seja, os fluxos migratórios (ilegais ou clandestinos) têm razões bem objectivas. E sobre elas é que há que trabalhar. Continuar a trabalhar. Pois que já há muita obra em curso. Falta, isso sim, um mais decidido e palpável envolvimento da comunidade internacional com as iniciativas viradas para o futuro. A NEPAD, por exemplo. É preciso quebrar o ciclo da conferencite e das reacções fast track no quente dos males que vão explodindo aqui e acolá e, sem vacilações, investir nos engajamentos com o fundo da questão. As reacções meramente curativas, nem muito menos as que se organizam pela via essencialmente persecutória (que é a mais expedita), não conduzem a nada de duradouro. Já dizia algures o presidente Clinton que «somos arrogantes porque estamos obcecados pelo presente». A mais de lidar, dentro de casa, com o problema da integração das comunidades imigrantes, os países desenvolvidos estão colocados perante o dever da solidariedade para com os povos ainda sufocados pela cintura da pobreza. E à medida que os anos rapidamente nos escorrem entre as mãos, mister se torna ir batendo na tecla dos Objectivos do Milénio. No fundo, estes são objectivos, dá-me mais satisfação dizer assim, para a dignidade da família humana.(4) Bem sei que em Cabo Verde não cultivamos o dever de memória, e desde logo o dever da memória institucional. De todo o modo, cabe recordar que, há já alguns anos, numa intervenção proferida, em Paris, na conferência internacional organizada pelo presidente Chirac sobre a problemática da segurança na Africa ocidental, o presidente Mascarenhas Monteiro já defendia que o pomo da questão era a garantia da paz, da estabilidade e do bem-estar. Ora bem.

6. O futuro da Africa é promissor. Felizmente, há cada vez mais gente a entender assim. Mais importante, há uma leva de novos dirigentes politicos apostados em afirmar no continente princípios tão decisivos quanto o da boa governação. Esta entendida no seu sentido mais completo, o qual não se capta com o olhar meramente financista. O futuro do continente africano é um domínio em que urge ser optimista. Sou dos que crêem que o optimismo é o necessário ponto de partida para a acção. Chega a ser retemperador que seja alguém como o presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, a defender o «neo-optimismo». Diz ele: «For every «Afro-pessimist» today, there was an «Oriental fatalist» just 40 years ago». Tudo bem. Tão bem que não nos deve fazer esquecer que o presente é ainda complicado. Ou seja, ainda está sobre a mesa a factura de quarenta anos de erros, de delapidações, de corrupção, de conflitos, de crimes contra a humanidade, de esbatimento do primeiríssimo valor que é o da vida humana. A limpeza étnica aí nos Grandes Lagos não foi há assim tanto tempo. Darfur, esse, ainda cá está, tal vergonha que persiste. Por outro lado, alguém como Charles Taylor é finalmente trazido a julgamento. Isto é excelente. É um começo. Timidamente, o começo. Há outros lordes da guerra ainda a monte. Mas o que mais importa é que já está ser percorrido o caminho que conduz ao fim da ideia de impunidade. Pelo menos a esse nível.

7. Cabo Verde é um país frágil no meio desta dinâmica toda. Claro que importa juntar à equação as questões do tráfico de drogas e, em geral, da criminalidade transfronteiriça organizada. São dados do contexto em que vivemos. De há uns anos para cá temos sido, claramente, um oásis para muitas pessoas originárias de países vizinhos afectados por problemas diversos. Fomos crescendo como um país de imigração, por certo sem as necessárias cautelas. Acredito que este desenvolvimento não foi em momento algum projectado. O certo é que ele é hoje um dado. Habituados a ir (embora querendo ficar), temos desta vez de aprender a saber acolher os quem demandam as nossas ilhas. A nossa história enquanto nação de emigrantes obriga-nos e ensina-nos a saber ser uma boa sociedade de acolhimento. Melhor: uma sociedade de bom acolhimento. E este não é um problema que se esgota na récita politica. Bem pelo contrário, trata-se de algo a crescer como um novo valor na sociedade cabo-verdiana. Um valor que tem como ingredientes a tolerância e a solidariedade. Penso que estamos em condições de construir este novo conteúdo da história das nossas ilhas que, enquanto tais, sempre estiveram e sempre estarão abertas a esse mundo mais largo do qual o horizonte nunca nos amedrontou. Ponto é que saibamos até onde podemos e queremos ir. Até onde podemos receber e garantir àqueles que recebemos o necessarium vitae. Neste domínio da circulação de pessoas já nenhum país age só com o coração ou despreocupado de garantias e contrapartidas. Há quem fale de fim do modelo humanitário. Não se descuide do seguinte facto: em regra, da livre circulação evolui-se para a (livre) instalação. Já porque a relação estabelece-se entre países com desiguais condições em termos de estabilidade e possibilidades de trabalho. Ora, ser país de imigração acarreta custos e responsabilidades, a começar pelo dever de assegurar a boa integração social dos que chegam, de molde a que a cidadania não lhes seja um conceito oco, antes os conduza ao tal direito de pertença. Definição clara, em sede legislativa, das regras de jogo, seriedade e firmeza na sua aplicação, legitimação social das opções, creio residir aqui assim a pedra de toque do percurso a fazer nesta matéria. Trata-se de um percurso que diz respeito a toda a Nação. Tenho que, pela magnitude das questões em liça (e as implicações de uma ou outra opção), todo e qualquer risco de deficit de debate deveria ser evitado ao longo do caminho. Debate à sério, envolvendo todos, suscitando ideias e fundamentação das mesmas, porventura contrariando o nosso estilo bem crioulo de primeiro falar e só depois, talvez, ir pensar. Creio, modestamente creio, na pertinência de um tal debate. E concluo assim: mesmo os oásis têm dramas, o menor deles não sendo, seguramente, a finitude dos recursos.

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(1) Na Espanha (como, aliás, noutras democracias já maduras) é comum que personalidades que exerceram, exercem ou pensam vir a exercer funções no Estado escrevam textos de opinião, defendendo com frontalidade as suas ideias e trazendo para debate a fundamentação teórica, estratégica ou de mera pertinência politica ou sociológica de medidas que tomaram, estão a tomar ou pensam vir a tomar. Por certo que há nisto o dever de cidadania de contribuir para o enriquecimento do espaço público, mas há igualmente a assunção do princípio da prestação de contas, bem como a necessidade de carrear contributos para a construção/compreensão da experiência institucional. Por certo ainda que tudo isto decorre do sentido último dos (en)cargos públicos: servir o bem comum. Mais ultimamente, coube a vez a Miguel Angel Moratinos, quem escreveu um artigo intitulado «Do compromisso eleitoral à Espanha do mundo global», assim fazendo o balanço dos dois primeiros anos da governação Zapatero no domínio das Relações Exteriores e Cooperação.
Entre nós este tipo de hábito, porque salutar, não existe. Há tão-só excepções que confirmam a regra. Uma delas é o texto que José Maria Neves publicou por ocasião do terceiro aniversário do seu primeiro governo. Outra é a obra em que Aristides Lima dá conta de como esteve «No Parlamento ao serviço da Nação e dos Boavistenses». Mais regulares são as colunas de Jorge Carlos Fonseca e Jose Antonio dos Reis, ambos antigos governantes.

(2) Ao que parece, securitário é o novo enxerto que se quer, à viva força, impor à língua portuguesa, tudo com essa descontracção que só o desconhecimento permite. Persisto nesta linha, e isto vai dito entre parentêsis: a língua portuguesa é suficientemente rica e pujante. Ela enriquece-se na dinâmica das contribuições honestamente criativas e não pela via de pseudo-inovações que decorrem da falta de familiaridade com as soluções que existem na própria língua. De resto, fica difícil reconhecer o direito a inovar a quem não dá provas de dominar os rudimentos. Entretanto, enquanto não descobrimos a melhor forma de lidar com o português, os mais jovens continuam a aprender a não saber.

(3) De interesse, Raghuram G. Rajan e Luigi Zingales, The persistence of Underdevelopment: Institutions, Human Capital or Constituencies?, NBER, Cambridge, 2006.

(4) Insisto no seguinte ponto: Cabo Verde tem, em matéria de Direitos Humanos, um «percurso notável». Defendi isso na Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em 2003. Tanto me tem levado a entender que a nossa experiência deveria ser, sem rebuços, agigantada na arena internacional. A nossa voz é autorizada, o que não é o caso de muitos que agora (con)correm para ocupar assentos no novel Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o que não deixa de ser um mau presságio. Infelizmente, muitos entre nós têm dos Direitos Humanos um entendimento algo atávico. Tenho que há muito, mas muito mais seara para lá de certas cantilenas que se fazem, sazonalmente, para beneficio das passerelles que conduzem aos telejornais. E digo logo a que seara me refiro: a da realizaçao da cidadania cultural, social e económica. Como pude anotar em 1999, situa-se aqui, no que a Cabo Verde concerne, o essencial da luta.

Este texto foi publicado, a 5 de Maio de 2006, no jornal “A Semana Online”.


Assim como que para benefício de inventário, irei retomando aqui no blog um que outro texto já publicado algures.



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