quem tem medo de Virgínia Woolf?
1. Fico incomodado sempre e quando vem à ribalta essa estória dos crimes de responsabilidade praticados por titulares de cargos políticos, melhor dizendo, da dita necessidade de uma lei atinente a tais crimes. Sazonalmente, essa necessidade tem sido esgrimida por uns e minimizada por outros. E vem sendo assim há já algum tempo, largo tempo. Digamos que se trata de um dossier mal parado. E, já se sabe, nestas situações acontece um pouco o drama das águas estagnadas: tendem a feder e a gerar bichos.
2. Desse estado de parece-que-vai-mas-não-vai, a ideia que fica para a generalidade dos cidadãos é a de que os titulares dos cargos políticos não querem ser responsabilizados, não querem ter à sua volta nada que possa ser ou parecer ser um colete-de-forças que lhes tolha os movimentos, assim uma espécie de camisa de sete varas que os impeça de fazer o que lhes der na real gana. Ora, é isto que me parece grave: deixar passar a ideia de que estamos perante uma matéria que se pode, alegremente, adiar para as calendas gregas. A ideia de um território de ninguém, sem rei nem roque. Robinson Crusoe na sua ilha.
3. Será bem assim? Não creio. Simplesmente pelo seguinte: não se pode, de modo algum, deixar passar a ideia de que a classe política ou, tão-só, os titulares de cargos políticos estariam interessados na existência de zonas de não responsabilização, ou seja, zonas de impunidade. Bem pelo contrário, creio que o que mais interessará a essa classe é que ela própria seja sentida pela sociedade como um colégio de gente apostada na criteriosa gestão dos bens públicos, dos bens que pertencem a todos nós, comunidade nacional, e, por conseguinte, gente que não tem razões para ter medo de mecanismos de controlo e responsabilização, quaisquer que eles sejam. Mas mais: que se trata de gente que, independentemente de eventuais brechas no sistema normativo, e apesar delas, actua sempre num quadro de estrita defesa dos interesses da comunidade, nacional ou municipal, e de irrepreensível gestão da coisa pública. Creio que reside aqui assim a pedra-de-toque da confiabilidade da classe política. A honestidade não é uma construção da lei, de nenhuma lei.
4. A própria Constituição da República cuida desta matéria e dirige ao legislador um claro comando no sentido de “estabelecer as sanções aplicáveis e os efeitos destas, que poderão incluir a perda do cargo ou do mandato e a impossibilidade temporária de exercer cargos políticos” (artigo 122º, nº 2). A verdade é que o legislador, concretamente o Parlamento, está numa situação de incumprimento no que diz respeito ao desenvolvimento da Lei Fundamental, neste particular. Esse é que é ponto e não há como contorná-lo. Pessoalmente, tenho por fundamental que os sujeitos políticos com intervenção/capacidade de decisão nesta matéria assumam, tão cedo quanto possível, um compromisso claro no sentido da resolução, de vez, deste problema. E, claro está, actuem no sentido da transformação desse compromisso em resultados concretos.
5. Julgo poder ter-se como pacífico que o mais natural, naturalíssimo, nos marcos de um Estado de Direito Democrático, é que os titulares de cargos políticos possam ser, “por actos e omissões que praticarem no exercício das suas funções e por causa delas”, chamados à pedra sempre que haja fundadas razões para tanto, maxime no plano da responsabilidade criminal. E é inadmissível que se queira passar a ideia de que pode não ser assim ou de que por ora pode não ser assim. Um tal Estado não é concebível numa lógica de transacções de conveniência ou de cedências/concessões relativamente ao seu “código genético” que é constituído, justamente, por um leque de princípios, valores e regras. Muito diferentemente, é preciso, no dia a dia, extrair consequências práticas desses princípios, desses valores e dessas regras. Tem de haver congruência entre este tipo de entendimento e a prática dos sujeitos e das instituições. Mas mais: tem de haver actuação dos mecanismos independentemente de quem esteja em causa. Não pode haver favorecimento ou complacência nas situações de indesculpáveis prejuízos causados ao interesse colectivo, à coisa comum.
6. Há já largos anos que tenho tido o ensejo de contribuir, através de textos de diversa natureza, para uma desejada substanciação deste modo de entender este tipo de problemas. No fundo, continuo a crer que o Estado de Direito Democrático seria uma grande treta se não estivéssemos todos decididos e firmes em relação a essas suas referências de conteúdo. Permito-me recuperar aqui as seguintes palavras: “Não basta proclamar o Estado como sendo democrático; seria contentar-se com a forma. È preciso que os conteúdos imperem sobre a forma e, nessa medida, actuem como limites, como parâmetro, como garantia em todo o transcurso do desempenho do Estado. Por isso mesmo, o Estado de Direito Democrático é um Estado da responsabilização. Se tudo é feito em nome do povo, aqueles que sejam eleitos para o representar recebem por esse modo não uma licença para o livre arbítrio ou para a impunidade senão que um mandato para agir no interesse dessa “comunidade de destino” que é o povo. [...] Desdobramento lógico da responsabilização é o princípio da transparência, o qual, como linha mestra da actuação do Estado, propicia o ambiente necessário ao exercício continuado do controlo e à regular prestação de contas num quadro de normalidade institucional.” (cfr. “As Grandes Opções do Plano – Uma Agenda Estratégica”, Chefia do Governo, 2002, 41).
7. Desejo soar claro quanto ao seguinte: não há nada mais pernicioso para um Estado de Direito do que a ideia de impunidade. De que as coisas funcionam para uns tantos mas claudicam quando se trata dos”exércitos anónimos”, de que o sistema serve a alguns mas não a todos, de que há uns que sempre apanham no focinho e outros que levam sempre a melhor. Ou seja, a ideia, a simples ideia de impunidade é o terrível caruncho com vocação a corroer o edifício do Estado de Direito. Não é por acaso que várias venerandas democracias fizeram investimentos avultadíssimos em autênticas cruzadas contra a corrupção, não é por acaso que a opinião pública em vários países fica à beira de um ataque de nervos sempre que estala algum “escândalo” relativo a desmandos deste ou daquele servidor político. É bom não cair na ingenuidade de crer que há males que só acontecem a outros.
8. Para um país como Cabo Verde, onde o subir ao lume a caldeira comum continua a depender em muito do concurso de terceiros (por mais que isso doa à nossa proverbial vaidade), seria fundamental afirmar-se uma zero tolerance para as situações de má gestão dos interesses públicos, seja no plano nacional, seja no municipal. E digo mais: parece-me desprestigiante a forma como alguns se mobilizam para defender, para “normalizar” situações onde o bom senso aconselha que haja, no mínimo, investigação, apuramento, exercício do contraditório, julgamento se for caso para isso – tudo, naturalmente, a decorrer no recato e com a contenção de exteriorizações como convém e é de norma.
9. Insisto nesta minha preocupação, dizendo agora o seguinte: aquando da tomada de posse, seria magnífico se o juramento dos titulares de cargos políticos contemplasse algo como isto: “juro...... e gerir com honestidade os interesses públicos, designadamente os recursos colocados sob a minha responsabilidade”. È lamentável que muitos não tenham ou não queiram interiorizar esta dimensão de lisura na gestão dos bens comuns. E aí de nós se equacionarmos este problema apenas desde o ângulo dos montantes em causa (terreno X, prédio não sei quantas, empresa etc. e tal)!... A boa gestão da coisa comum deve demonstrar-se nos “pequenos nadas” do giro quotidiano. Infelizmente, nesta matéria a nossa (in)cultura é ainda a do “vai desfrutando que amanhã será a minha vez”... Por mais que não se queira admitir, a verdade é que somos um país de fortunas repentinas e, pior ainda, um país de “punição social” por quem viva dos justos rendimentos do seu trabalho.
10. Concluo com o seguinte: esta matéria da responsabilização dos titulares de cargos políticos é de fundamental importância para o bom funcionamento do nosso sistema democrático e para a credibilidade dos actores políticos. Se há negociações a fazer em ordem a haver uma solução em forma de lei, elas devem ser feitas. Urge que elas aconteçam. Para mim, cidadão, soa a manigância, por exemplo, discutir se a matéria deve constituir um diploma autónomo ou se deve figurar como parte de um estatuto dos titulares dos cargos políticos. Vale dizer: delongas em Bizâncio... Aliás, excluídos os casos de sankarismo envergonhado ou dessa hipocrisia mansa de que falei há alguns anos, qualquer cidadão que analise serenamente as coisas da nossa praça da política há-de concluir que o “estatuto” desses titulares precisa ser trabalhado, mormente na sua vertente remuneratória. Sei naturalmente que há factores de embaraço, como, por exemplo, esse “preguiçoso” regime de indexação dos salários ou essa perdulária via das equiparações que leva a meter no mesmo cacifo salarial cargos com diferenciados níveis de exigências e responsabilidades. Como quer que seja, negociar é preciso. Para alguma coisa devem servir as famosas mesas de negociação. E, note-se, nenhum bom negociador se vangloria de impasses... na negociação.
Palmarejo, 23 de Setembro de 2005.
Ainda para benefício de inventário.
1. Fico incomodado sempre e quando vem à ribalta essa estória dos crimes de responsabilidade praticados por titulares de cargos políticos, melhor dizendo, da dita necessidade de uma lei atinente a tais crimes. Sazonalmente, essa necessidade tem sido esgrimida por uns e minimizada por outros. E vem sendo assim há já algum tempo, largo tempo. Digamos que se trata de um dossier mal parado. E, já se sabe, nestas situações acontece um pouco o drama das águas estagnadas: tendem a feder e a gerar bichos.
2. Desse estado de parece-que-vai-mas-não-vai, a ideia que fica para a generalidade dos cidadãos é a de que os titulares dos cargos políticos não querem ser responsabilizados, não querem ter à sua volta nada que possa ser ou parecer ser um colete-de-forças que lhes tolha os movimentos, assim uma espécie de camisa de sete varas que os impeça de fazer o que lhes der na real gana. Ora, é isto que me parece grave: deixar passar a ideia de que estamos perante uma matéria que se pode, alegremente, adiar para as calendas gregas. A ideia de um território de ninguém, sem rei nem roque. Robinson Crusoe na sua ilha.
3. Será bem assim? Não creio. Simplesmente pelo seguinte: não se pode, de modo algum, deixar passar a ideia de que a classe política ou, tão-só, os titulares de cargos políticos estariam interessados na existência de zonas de não responsabilização, ou seja, zonas de impunidade. Bem pelo contrário, creio que o que mais interessará a essa classe é que ela própria seja sentida pela sociedade como um colégio de gente apostada na criteriosa gestão dos bens públicos, dos bens que pertencem a todos nós, comunidade nacional, e, por conseguinte, gente que não tem razões para ter medo de mecanismos de controlo e responsabilização, quaisquer que eles sejam. Mas mais: que se trata de gente que, independentemente de eventuais brechas no sistema normativo, e apesar delas, actua sempre num quadro de estrita defesa dos interesses da comunidade, nacional ou municipal, e de irrepreensível gestão da coisa pública. Creio que reside aqui assim a pedra-de-toque da confiabilidade da classe política. A honestidade não é uma construção da lei, de nenhuma lei.
4. A própria Constituição da República cuida desta matéria e dirige ao legislador um claro comando no sentido de “estabelecer as sanções aplicáveis e os efeitos destas, que poderão incluir a perda do cargo ou do mandato e a impossibilidade temporária de exercer cargos políticos” (artigo 122º, nº 2). A verdade é que o legislador, concretamente o Parlamento, está numa situação de incumprimento no que diz respeito ao desenvolvimento da Lei Fundamental, neste particular. Esse é que é ponto e não há como contorná-lo. Pessoalmente, tenho por fundamental que os sujeitos políticos com intervenção/capacidade de decisão nesta matéria assumam, tão cedo quanto possível, um compromisso claro no sentido da resolução, de vez, deste problema. E, claro está, actuem no sentido da transformação desse compromisso em resultados concretos.
5. Julgo poder ter-se como pacífico que o mais natural, naturalíssimo, nos marcos de um Estado de Direito Democrático, é que os titulares de cargos políticos possam ser, “por actos e omissões que praticarem no exercício das suas funções e por causa delas”, chamados à pedra sempre que haja fundadas razões para tanto, maxime no plano da responsabilidade criminal. E é inadmissível que se queira passar a ideia de que pode não ser assim ou de que por ora pode não ser assim. Um tal Estado não é concebível numa lógica de transacções de conveniência ou de cedências/concessões relativamente ao seu “código genético” que é constituído, justamente, por um leque de princípios, valores e regras. Muito diferentemente, é preciso, no dia a dia, extrair consequências práticas desses princípios, desses valores e dessas regras. Tem de haver congruência entre este tipo de entendimento e a prática dos sujeitos e das instituições. Mas mais: tem de haver actuação dos mecanismos independentemente de quem esteja em causa. Não pode haver favorecimento ou complacência nas situações de indesculpáveis prejuízos causados ao interesse colectivo, à coisa comum.
6. Há já largos anos que tenho tido o ensejo de contribuir, através de textos de diversa natureza, para uma desejada substanciação deste modo de entender este tipo de problemas. No fundo, continuo a crer que o Estado de Direito Democrático seria uma grande treta se não estivéssemos todos decididos e firmes em relação a essas suas referências de conteúdo. Permito-me recuperar aqui as seguintes palavras: “Não basta proclamar o Estado como sendo democrático; seria contentar-se com a forma. È preciso que os conteúdos imperem sobre a forma e, nessa medida, actuem como limites, como parâmetro, como garantia em todo o transcurso do desempenho do Estado. Por isso mesmo, o Estado de Direito Democrático é um Estado da responsabilização. Se tudo é feito em nome do povo, aqueles que sejam eleitos para o representar recebem por esse modo não uma licença para o livre arbítrio ou para a impunidade senão que um mandato para agir no interesse dessa “comunidade de destino” que é o povo. [...] Desdobramento lógico da responsabilização é o princípio da transparência, o qual, como linha mestra da actuação do Estado, propicia o ambiente necessário ao exercício continuado do controlo e à regular prestação de contas num quadro de normalidade institucional.” (cfr. “As Grandes Opções do Plano – Uma Agenda Estratégica”, Chefia do Governo, 2002, 41).
7. Desejo soar claro quanto ao seguinte: não há nada mais pernicioso para um Estado de Direito do que a ideia de impunidade. De que as coisas funcionam para uns tantos mas claudicam quando se trata dos”exércitos anónimos”, de que o sistema serve a alguns mas não a todos, de que há uns que sempre apanham no focinho e outros que levam sempre a melhor. Ou seja, a ideia, a simples ideia de impunidade é o terrível caruncho com vocação a corroer o edifício do Estado de Direito. Não é por acaso que várias venerandas democracias fizeram investimentos avultadíssimos em autênticas cruzadas contra a corrupção, não é por acaso que a opinião pública em vários países fica à beira de um ataque de nervos sempre que estala algum “escândalo” relativo a desmandos deste ou daquele servidor político. É bom não cair na ingenuidade de crer que há males que só acontecem a outros.
8. Para um país como Cabo Verde, onde o subir ao lume a caldeira comum continua a depender em muito do concurso de terceiros (por mais que isso doa à nossa proverbial vaidade), seria fundamental afirmar-se uma zero tolerance para as situações de má gestão dos interesses públicos, seja no plano nacional, seja no municipal. E digo mais: parece-me desprestigiante a forma como alguns se mobilizam para defender, para “normalizar” situações onde o bom senso aconselha que haja, no mínimo, investigação, apuramento, exercício do contraditório, julgamento se for caso para isso – tudo, naturalmente, a decorrer no recato e com a contenção de exteriorizações como convém e é de norma.
9. Insisto nesta minha preocupação, dizendo agora o seguinte: aquando da tomada de posse, seria magnífico se o juramento dos titulares de cargos políticos contemplasse algo como isto: “juro...... e gerir com honestidade os interesses públicos, designadamente os recursos colocados sob a minha responsabilidade”. È lamentável que muitos não tenham ou não queiram interiorizar esta dimensão de lisura na gestão dos bens comuns. E aí de nós se equacionarmos este problema apenas desde o ângulo dos montantes em causa (terreno X, prédio não sei quantas, empresa etc. e tal)!... A boa gestão da coisa comum deve demonstrar-se nos “pequenos nadas” do giro quotidiano. Infelizmente, nesta matéria a nossa (in)cultura é ainda a do “vai desfrutando que amanhã será a minha vez”... Por mais que não se queira admitir, a verdade é que somos um país de fortunas repentinas e, pior ainda, um país de “punição social” por quem viva dos justos rendimentos do seu trabalho.
10. Concluo com o seguinte: esta matéria da responsabilização dos titulares de cargos políticos é de fundamental importância para o bom funcionamento do nosso sistema democrático e para a credibilidade dos actores políticos. Se há negociações a fazer em ordem a haver uma solução em forma de lei, elas devem ser feitas. Urge que elas aconteçam. Para mim, cidadão, soa a manigância, por exemplo, discutir se a matéria deve constituir um diploma autónomo ou se deve figurar como parte de um estatuto dos titulares dos cargos políticos. Vale dizer: delongas em Bizâncio... Aliás, excluídos os casos de sankarismo envergonhado ou dessa hipocrisia mansa de que falei há alguns anos, qualquer cidadão que analise serenamente as coisas da nossa praça da política há-de concluir que o “estatuto” desses titulares precisa ser trabalhado, mormente na sua vertente remuneratória. Sei naturalmente que há factores de embaraço, como, por exemplo, esse “preguiçoso” regime de indexação dos salários ou essa perdulária via das equiparações que leva a meter no mesmo cacifo salarial cargos com diferenciados níveis de exigências e responsabilidades. Como quer que seja, negociar é preciso. Para alguma coisa devem servir as famosas mesas de negociação. E, note-se, nenhum bom negociador se vangloria de impasses... na negociação.
Palmarejo, 23 de Setembro de 2005.
Ainda para benefício de inventário.
Este texto foi publicado, a 27 de Setembro de 2005, em “A Semana online”.
Cabo Verde conta actualmente com uma lei que define e regula os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos(Lei nº 85/VI/2005, de 26 de Dezembro).
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