domingo, setembro 14, 2008

Ainda o 11 de Setembro

Das torres e da violência que as arrasou

"How quickly it could all disappear!"
Derek Walcott

I.
1. Os ataques terroristas ultimamente perpetrados nos EUA são a todos os títulos condenáveis e não têm por si o menor assomo de justificação. São indefensáveis. Denotam um desalmado grau de fria premeditação e um inapelável desamor pelo próximo, este também um ser humano mas a cuja vida, no turbilhão da malvadez à solta , não se reconhece valor algum. O que é grave. Grave porque o direito à vida é a candeia de todos os Direitos do Homem; grave ainda porque a sanidade de cada comunidade de pessoas e da própria Comunidade das Nações justamente pressupõe e exige essa basilar dimensão ética que é o respeito pela pessoa humana e a sua intrínseca dignidade. Este tanto constitui fruto sazonado do progresso milenar que, como bem entende Eco, ampara uma semântica universal que não conhece fronteiras. Não deve conhecê-las. Torna-se evidente que a sanha terrorista deve ser condenada onde quer que se manifeste e qualquer que seja a forma que assuma. Uma dessas formas, importa recordá-lo, é seguramente o terrorismo de Estado – e sobre isto a História tem recolhido exemplos vários, com consequências (vítimas incontáveis, destruição alastrada, miséria e doenças...) que em regra não chegam, ou chegam devidamente “tratadas”, às parangonas da imprensa internacional, mas que indubitavelmente vêm contribuindo para alimentar um caudal de violência latente que tende a exprimir-se, a vir à tona. A impunidade é assim uma miragem. A espiral de violência, essa, não. Neste equilíbrio, é dramática a posição dos Estados pequenos e frágeis.

2. Repentinamente entrámos num tempo de absoluta imprevisibilidade, não sendo de descartar, sequer subestimar, os cenários de reacção mais extrema ou irracional. Infelizmente para todos, as armas de destruição indiscriminada (maxime as químicas e biológicas) e os requintes da mais avançada tecnologia têm estado ao alcance de mãos inescrupulosas.
Deve constituir esforço de clarividência, particularmente para quem tenha responsabilidades de direcção política, não misturar o que não deve ser misturado. Infelizmente, o fragor das primeiras reacções permitiu dar corpo a tiradas de cunho medieval como a do “ataque à nossa civilização”. Rapidamente se esqueceu que, com McVeigh, ficou provado à saciedade que o inimigo pode também estar intramuros. Ainda que apenas fornecendo apoios desta ou aqueloutra natureza, como necessariamente terá acontecido nesses ataques ao WTC e ao Pentágono, os quais denotam um grau elevado de minúcia e profissionalismo. Inimigos sem rosto (parece evidente que o de Bin Laden não esgota a teia maligna) mas com tentáculos, com influências, com poder de influenciação ou, se se quiser, de compra. Dito de modo diverso, o terrorismo não é uma ameaça necessariamente externa ou um perigo indubitavelmente localizável como, de resto, o não é o crime transnacional organizado. Mais: interessante que seja do ponto de vista intelectual ou académico, o debate em torno do “relativismo cultural” deve nutrir-se de outros ingredientes que não o fanatismo, religioso ou outro, e muito menos o terrorismo. E o produto idóneo desse debate deve poder estender subsídios de nobilitação à récita política, particularmente aquela que contende com as relações internacionais.

2.1 É preciso não perder de vista que o terrorismo não é um dado novo nas relações internacionais. A este prepósito escreve o professor Janusz Symonides (in Human Rights: new dimensions and challenges, 1998): “O aumento das práticas terroristas nos séculos dezanove e vinte tornou evidente a necessidade de cooperação internacional para o seu combate. O primeiro passo foi dado pela Liga das Nações que adoptou, em 1937, uma convenção especial para o combate e a prevenção do terrorismo. Embora esta convenção não tenha entrado em vigor, ela jogou um importante papel na condenação do terrorismo, qualificando-o como um crime internacional.”
Mais ultimamente, um avanço significativo foi protagonizado pela Conferência Mundial sobre os Direitos do Homem (Viena, 1993) ao estabelecer uma directa relação entre o terrorismo e as violações dos Direitos do Homem, justamente laborando o entendimento segundo o qual o terrorismo representa um severo teste ao ideal dos direitos fundamentais e constitui uma clara ameaça à vida e à dignidade da pessoa.
Ainda da banda das Nações Unidas, permanece o dever de cumprir o compromisso de dotar a comunidade internacional de instrumentos globais e mais constringentes para o combate ao terrorismo, e desde logo aprofundando os mecanismos para a efectivação do dever de colaboração entre os Estados. Naturalmente que, enquanto a organização universal a corpo inteiro, a ONU, no interesse de toda a comunidade internacional, deve poder liderar esse combate, acautelando os valores supremos duramente conquistados e que estão consagrados na sua Carta.

3. Evidentemente que existe, inquestionável, o direito a reagir. Como existe o dever de punir. De punir os responsáveis e apenas eles. O sangue de inocentes não se lava trucidando outros inocentes. A política do olho por olho só conduz à cegueira, já advertia Gandhi. Mas é fundamental que não reine a impunidade e, para tanto, é necessário que todos os Estados dêem provas de coerência entre o seu discurso e as suas acções concretas para ajudar a fechar o cerco ao terrorismo. Melhor, à violência. Esta não deve contar com “safe harbors”, enseadas amenas aonde não cheguem o sofrimento das vítimas e os ditames da legalidade internacional. Julgo que a mulher de César não se importa de ser empurrada para a arena dos Estados: não basta ser, é preciso parecê-lo.
Outrossim (e isto é relevante para nosoutros, gente migrante), neste período posterior aos ataques de 11 de Setembro, certamente que serão dissecadas com redobrado interesse abordagens como a do ensaio de Stephen E. Flynn sobre a problemática do controle fronteiriço nestes tempos da globalização. Aí, premonitório, referia esse estudioso que “os americanos têm razões para se inquietarem com a porosidade das suas fronteiras” (vide Foreign Affairs, Nov.-Dez., 2000).

4. A comunidade internacional está longe de ser um espaço pacificado e dificilmente o será enquanto persistirem os diversos focos de violência real. Não adianta ignorá-los. São escandalosamente palpáveis as bolsas de exclusão neste mundo alardeado como sendo de globalização; é demasiadamente pungente o desconsolado olhar desse “exército de famintos” retido à porta de entrada para a dignidade humana; está sobejamente demonstrado que mais confrangedor do que o dito “gap tecnológico” é o “gap” da comida, o da água, o da saúde, o da educação, o da cidadania; é claramente claudicante a récita da solidariedade ante o egoísmo (chame-se-lhe “donor fatigue”) dos mais fortes; é perigosamente redutor o iluminismo que perspectiva a segurança global desde um ângulo normalizador que, servido pelo poderio militar, exige obediência, submissão, senão que mesmo demissão de aspirações colectivas legítimas... Não adianta fazer fuga em frente. Há problemas por resolver e não se deve contentar com o tratamento casuístico das suas manifestações, mormente as que vêm pelos caminhos da violência.

5. Isto dito, tenho para mim que, em matéria de terrorismo, a política do “zero tolerance” é a mais acertada. Mas sempre no quadro do Direito. O Estado de Direito não pode, não deve, defender-se negando-se, ou seja, despojando-se do seu próprio quadro de valores e regras. A tanto impõem: primeiro, a condução do relacionamento internacional (e no plano interno, pois concerteza) pelo primado do Direito, com absoluta denegação de espaço a ponderações de base racista ou preconceituosas do ponto de vista religioso ou cultural; e, segundo, as vidas inocentes que foram sendo, vão sendo ceifadas pelas esquinas (umas mais mediáticas que outras, é certo) da História. Já Hegel tinha razão ao referir-se a esta como sendo um imenso matadouro. E eis que se atinge o paroxismo ao transformar-se aviões do giro comercial em (até então) inimagináveis objectos de morte e de terror. Autênticas armas mortíferas. Armas de devastação.

II.
6. Devastação na mais cosmopolita das cidades, na urbe de todos os credos e liberdades, na encruzilhada por excelência de todas as manifestações da Humanidade, cidade porta de entrada de migrantes do mundo inteiro, cidade-anfitriã das Nações Unidas, cidade inigualada no seu bulício feito de glórias, de frenesim tecnológico, de excessos, de assimetrias e vaidades (a tal fogueira de Wolf) e, sempre, desse real sentido e orgulho de ser new yorker. E é esta mesma “marca especial” que vai seguramente acalentar a reconstrução. Esta, mais do que a necessária dimensão física, perfila-se como um complexo processo de recomposição, de reequilibrio. Ou, como é comum dizer-se por aqueles lados, um processo de cura. E assim o tempo para a fénix renascer dos escombros. Para gáudio dos amigos de New York, que são de longe muitos mais que os inimigos.

7. Tenho por correcto que a sede das Nações Unidas, pelo número de delegados e funcionários que a têm demandado ano após ano, tem contribuido largamente para esse rol de amigos, gente dos mais diversos caminhos da vida e portadora de diferentes substratos culturais. E seja-me relevada uma nota pessoal. Com colegas que juntos fizemos o ombro-a-ombro da azáfama onusina, uns ainda por lá, outros de regresso aos seus países ou servindo em embaixadas algures, tenho comungado, pela fluidez da internet, o sentimento de perda e de profunda indignação.

8. Para New York o regresso à normalidade é um direito. E à tranquilidade, cabe aditar. Tranquilidade para cada um viver NYC à sua maneira, tirando o proveito desejado, ou apenas o possível, das possibilidades muitas e ofertas várias que só em Nova Iorque. De todo o modo, ainda que seja apenas a tranquilidade para demandar uns acordes de jazz nas profundezas do Harlem, ou para apreciar uma refeição num típico spot do Brooklyn ou uma incursão pelas noches calientes de Queens, para fruir um livro no aconchego da Barnes & Noble ou percorrer uma exposição no Moma, ou tão-só para fintar o colestrol com um hot-dog embevecido pelos feéricos painéis do Times Square.

9. As torres gêmeas já não existem, senão que apenas a memória delas. Aprendi a admirá-las como um magnificente produto do engenho humano e nunca me cansei de, aí desse “cume do mundo” (tal era a divisa que galhardamente ostentavam), estender o olhar pela baía, o East River e o Hudson, a Ellis Island, a Estátua da Liberdade sempre altiva, pelas pontes, por Manhattan com o seu inconfundível rendilhado de arranha-céus, de luzes, de azáfama.
Nova Iorque não é a mesma sem as suas Twin Towers. É enorme, amargurado, o vazio que fica. E é um vazio partilhado por muitos. Com efeito, há criações, desde logo artísticas e arquitectónicas, que marcam o espaço em que se situam e ganham o desvelado apego da comunidade. As torres, essas, eram um símbolo. Como tal, viveram, até ao fim, o drama dos símbolos: concitar paixões.

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Assinalado que foi mais um aniversário do fatídico 11 de Setembro, ocorreu-me trazer para este espaço um texto que publiquei escassos dias após esse trágico acontecimento, mais concretamente no jornal Horizonte, edição de 25 de Setembro de 2001. O mesmo texto foi, mais tarde, incluído no meu livro Cidadania e Liberdade – palavras que escrevi, Spleen Edições, Praia, 2005.
Imagem da Reuters/Asim Tanveer.

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