Este texto foi publicado na minha página no Facebook, em duas partes sequenciais: post de 20 de Junho de 2020, englobando os pontos 1 a 9, e post de 27 do mesmo mês, com os restantes pontos. Foi pensado como um contributo para uma avaliação dos 45 anos de Cabo Verde como país independente.
Dentro de poucos dias, a República de Cabo Verde completará 45 anos. É uma idade bonita, sem dúvida, e que traduz um percurso de ganhos em seguramente todas as frentes da sua vida enquanto Nação independente e soberana. Infelizmente, a actual situação de combate à pandemia aconselha e impede que a celebração do 5 de Julho de 2020 ocorra da forma como todos seguramente gostaríamos, designadamente com um certo tipo de acções ou manifestações públicas que levariam à concentração de pessoas.
De todo o modo, a questão que hoje me vem ao espírito é outra: volvidos estes quarenta e cinco anos, poderíamos estar melhor? Seguramente que sim!
De forma breve e corrida, tocarei, em seguida, em alguns pontos que me preocupam de modo particular. Sobre alguns deles, aliás, tenho tido a oportunidade de me pronunciar com escritos de diversa natureza, ao longo dos anos. Estarei, por conseguinte, a reincidir, a sublinhar, a reiterar.
1. O nosso país continua a padecer de uma enorme incapacidade para debater questões de fundo e criar consensos, mormente em matérias de evidente interesse nacional, ou seja, comum. Chega a ser patético o grau de crispação e despique político-partidários. E não há rigorosamente nada que diga que tenha de ser assim! Pelo contrário, e desde o ângulo da sanidade do Estado e da sociedade, trata-se de um ambiente corrosivo e que tem significado prejuízos evidentes para o país no seu todo. Igualmente, parece legítimo concluir que haja quem ganhe com a crispação, que haja quem só sobreviva nos contextos de maniqueísmo, de preto ou branco, de a favor ou contra. Pois que crescer e deixar crescer nos territórios comuns, promover e ajudar a construir consensos é algo mais exigente. Escrevi algures que a classe política cabo-verdiana e a forma de estar e fazer política em Cabo Verde não reflectem a inteligência nacional nem o sentido critico e a vitalidade existentes na sociedade, nas mais diversas frentes de criação, intervenção, produção. Continuo a pensar assim. Há, na verdade, um fosso que se aprofunda entre esses dois ‘mundos’. E é eloquente o exemplo mais recente dessa dessintonia: a ausência de Mulheres candidatas a Presidente de Câmara Municipal nas próximas eleições autárquicas não é uma mera distração; é antes o resultado dessa forma arreigada de estar e fazer política. Melhor cedo do que tarde, Cabo Verde tem de dotar-se de uma classe política melhor preparada, com o necessário grau de Cultura Política e comprometimento com o interesse comum. Não é forçoso que a política seja a legitimação da mediocridade nem via aberta à ascensão de inaptos, sujeitos incapazes de realizar o bem comum, justamente porque a sua motivação ou agenda é bem outra. Dito de outra forma, o país chegou a uma idade em que já não pode nem deve permitir-se o luxo e o custo de experimentalismos. Muito diferentemente, tem de poder seleccionar e contar com os melhores. E o critério decisivo tem de ser o comprometimento com o bem comum! Claramente, os Partidos Políticos, reféns de fidúcias perversas, não têm sabido ou querido promover a ascensão dos melhores. E isto que escrevo ficará incompleto se não acrescentar o seguinte: é preciso humildade para saber sair de cena. Quarenta e cinco anos volvidos, a Juventude tem de assegurar uma outra forma de estar na Política. Abrir um novo capítulo. Ousar.
2. Padecemos, igualmente, da incapacidade para re-desenhar o Estado. Ir tão longe quanto o imponha a nossa condição de Estado-arquipélago e de parcos recursos. Insistimos em manter um desenho demasiado caro para as nossas posses. Outrossim, fazemos discursos reformistas mas renascemos todos os dias na mesmice. Arrastamos os pés e inventamos desculpas para não fazer o que tem de ser feito. Protelamos. Mesmo o óbvio faz-nos confusão. Por exemplo, acaso não será óbvio que a Cidade-Capital tem de ser dotada do seu estatuto específico? Por exemplo também, acaso não será óbvio que precisamos de um outro desenho constitucional para a Defesa e Segurança? (Sobre este particular pude expender as minhas razões numa ainda recente conferência em que o Rotary Clube Maria Pia quis ter-me como orador-convidado). Ou seja, refiro-me a empreitadas de fôlego fundo e que exigem alargado debate público e genuína abertura para consensos no plano politico. O sentido de reforma tem de ser um desígnio nacional e, assim, plasmado num pacto duradouro. Temos de poder ter ousadia nacional para reformar e capacidade política para convergir no essencial, no interesse comum. Sobretudo, temos de poder rejeitar a mania (o estigma?) da estaca-zero, do eterno recomeçar. Por essa via, temos perdido imenso tempo e recursos humanos e materiais. E está provado que só destrói quem nunca soube o valor do construir. Dou sempre o exemplo do depauperamento da Cultura Institucional, cujo sinais mais evidentes estão no a) desconhecimento que campeia por entre os mais novos Servidores do Estado e b) na desvalorização do savoir-faire específico a determinados domínios.
3. A Generosidade não é um valor seguro entre nós; o egoísmo sim. De 1975 até agora, terão crescido em sentidos opostos as curvas daquela e deste. Há uma classe de cidadãos que se tem entrincheirado nos seus benefícios e bem-estar, em completo desinteresse pela sorte dos menos favorecidos. Da ‘Póbreza’, com o forte conteúdo que esta expressão sempre teve no Crioulo. O sentido de solidariedade social tornou-se frágil em Cabo Verde. Temos produzido, desde há muito, um respeitável arsenal de discursos e teses, mas o dado indesmentível é a cintura de pobreza e exclusão social. Porventura a análise do diferenciado impacto da actual pandemia na sociedade cabo-verdiana nos leve, enquanto país, a um outro grau de determinação e consistência na luta pela inclusão social. Deste ponto de vista, as promessas os benefícios subjacentes à Independência e à Democracia ainda não chegaram a todos. Quarenta e cinco anos volvidos, urge que a luta contra a pobreza seja, tal como o foi no arranque da República, a prioridade das prioridades, para todos, a todos os níveis. Trata-se de uma dívida de decência. E sobre isto tem de haver consenso de Estado e da sociedade. Não nos iludamos: cada um de nós estará manco e frágil na respectiva zona de conforto se e enquanto a lógica em torno da pobreza não for invertida. Para lá da récita (política, partidária, de campanha, como se queira) Cabo Verde precisa encontrar-se neste ponto de sinceridade e compromisso consigo mesmo.
4. É pelo ângulo da sanidade social e institucional que normalmente vejo essa patologia que é a corrupção. Além do Estado, a sociedade precisa ter uma atitude clara nesta matéria. De repúdio! Como que um contexto geral de indisponibilidade para a corrupção. Pois que, perante um mal tão insidioso, o pior é a condescendência, a desvalorização da ameaça. Lá onde menos se espera esse mal pode bater à porta... e entrar. Sobretudo, importa ter sentido critico na leitura de certas cretinices subjacentes aos ‘índices’ e às ‘percepções’... Num país pobre e que se aguenta graças à ajuda internacional, a ‘percepção’ tem de ser drástica a tudo quanto signifique intencional menoscabo ou aproveitamento daquilo que a todos pertence. Que cada um mate a sede no pote que seja seu! De um modo geral, valores como a probidade e a entrega ao bem comum foram-se eclipsando do quadro nacional de referências, e é pena!
5. País pobre e dependente, todavia gastamos mais do que produzimos. Não nos orienta, enquanto Nação, uma lógica de qualidade e prioridade nos gastos. Entre a formiga e cigarra, preferimos sempre esta. Não concedemos tanto empenho à produtividade quanto o fazemos em relação ao entretenimento. Urge eliminar a cultura do mais ou menos e do deixa andar. Nenhum país chega à excelência e ao rigor nivelando por baixo. Talvez o impacto da pandemia na sociedade cabo-verdiana nos reconduza a recentrar o valor do trabalho, da exigência, do mérito. É fundamental que cada um faça a sua parte, na sua esfera de intervenção.
6. Do rigor também. Rigor intelectual, antes de mais. Espantosa a forma como navegamos por lugares-comuns ou futilidades e digladiamos com conceitos impropriamente ou de todo não apreendidos. Mais: existe um evidente ‘autismo’ para a opinião e os argumentos de outrem. Não há troca nem enriquecimento mútuo. O importante é negar e agredir. Um não-debate, afinal. E é essencialmente com tais linhas que se faz o nosso ‘espaço público’, infelizmente. O debate nacional precisa crescer em qualidade, urgentemente. A ninguém interessa que a mediocridade seja o diapasão. Na mesma linha, urge cultivar o respeito pelas fontes e pela Autoria. Além dos ditames da Lei, manda a elegância de Alma enviar um aceno a quem pensou e escreveu o que nos permitimos ‘inventar’.
7. Redondamente falhámos no ensino da História do país, mormente do seu passado recente. Somos, neste particular, globalmente ignorantes e com isso temos crescido em vaidade. Em tontice, melhor. Volvidos quarenta e cinco anos, persistem graves problemas de identidade. É triste, mas é a verdade. A título de exemplo, perante o aceso debate sobre o Racismo, encolhemo-nos, aflitos, sem saber onde encontrar agasalho. Destituídos de referências e convicção, titubeamos lá onde a denúncia devia ter sido inequívoca e espontânea a solidariedade. É só compulsar o que (não) se produziu, como pronunciamento, nas semanas recentes... Como estamos, não estamos bem! Precisamos parar, respirar fundo, debater...
8. Sinal maior da nossa inépcia para construir consensos sobre matérias essenciais é, precisamente, o que se tem registado em relação à Língua Cabo-Verdiana e ao reconhecimento do seu estatuto de trave-mestra da Identidade Nacional, com todas as consequências para o dia a dia da nossa sociedade. É clamoroso o atraso no cumprimento do comando constitucional. Num escrito de 2003, pude referir-me à negação dos Direitos Linguísticos da esmagadora maioria da população cabo-verdiana. Oxalá conheçamos, nesta matéria, o ganho final nos tempos mais próximos.
9. Somos uma sociedade profundamente contaminada pelo Medo. E esta é uma das mais tristes marcas destes 45 anos de Independência. Temos medo de ser livres. Temos medo de exercer plenamente a cidadania. Crescemos em calculismo e em astúcia. Permitimo-nos estar amarrados por censuras e auto-condicionamentos os mais diversos. Antes de exprimir o que nos vai na alma fazemos mil e uma contas. Encolhemo-nos. Apavora-nos a ideia de desagradar o chefe, de cair em desgraça. Para compensar, fazemos bravata em espaços mais ou menos privados. O exercício da liberdade e da cidadania não é, entre nós, um impulso natural. Por exemplo, as redes sociais, essas, vieram trazer-nos a ilusão da participação e do debate. A verdade é que os que genuinamente participam e exprimem opiniões são uns poucos. Há, isso sim, uma enorme plateia de ‘voyeurs’, aqueles que nunca se comprometem, os que nunca botam sequer um simples ‘gosto’ num post (em cujo conteúdo se reconheçam) porque isso poderá suscitar desaprovação desta ou daquela chefia, pôr em risco o emprego, fazer tremer a relação serviçal. São a actualização ou o ‘rebound’ do ‘toda a gente fala sim senhor’. Até parece que colocaram a coluna num pé-d’tarafe a apanhar vento. Esse tipo de ‘cidadania’ foi crescendo, melhor, foi-se engordando ao longo dos anos, abrangendo conterrâneos que estudaram, que se formaram, que deviam ser livres e ajudar outros a ser livres, mas não conseguem. Acomodaram-se, optaram pelo egoísmo do conforto. O seu contributo para a instalação do Medo é enorme. Aliás, precisam dele, não saberão sobreviver sem ele. Construíram, assim, toda uma argumentação para as covardias, grandes e pequenas, diárias e permanentes. Ao desgaste das disputas democráticas preferem colher na mansidão os frutos e, desta forma, quem quer que seja o chefe, estão sempre em cargos cimeiros. É só analisar o Quadro dos Estáveis da República... Fazem-se ‘indispensáveis’, proclamam-se ‘competentes’ e, por preguiça ou inércia, ninguém questiona a patranha. Fazem desdém dos Partidos Políticos mas anseiam pelas suas migalhas. Não admira, por conseguinte, que não exista no país uma classe de Independentes, reconhecida, idónea, sólida. Os que o têm pretendido ser só o são quando lhes dá jeito, em determinados momentos históricos. Ora, o oportunismo nunca poderá ser um definidor da ‘independência’. Sê-lo-ão sim a liberdade de pensamento, a coerência e constância nos posicionamentos, a intrepidez do verbo, a luta por aquilo em que se acredita independentemente (!!) e apesar de quem esteja no Poder. Igualmente, não admira que seja difícil a construção de alternativas credíveis no espectro político nacional. O miolo é bolorento.
10. Tenho que uma pesada mancha no balanço destes 45 anos de Cabo Verde Independente é a inexistência de uma Administração Pública verdadeiramente autónoma e ao serviço do interesse nacional. De uma agenda de Estado, afinal! Pelo contrário, a sua estabilidade e o seu amadurecimento são prejudicados pela sazonalidade das opções e lideranças. Ou seja, ela é ainda perversamente marcada pelos ciclos eleitorais e pela oscilação na escala de Qualidade dos titulares dos cargos políticos. Dito por inteiro: a chamada ‘partidarização da Administração Pública’ (e esta é a primeira vez que uso tal expressão) é um dos piores serviços prestados à Nação, nestes 45 anos. Infelizmente, a condenação tem ficado por isso mesmo. Pois que o cinismo político manda substituir o mal identificado... pelo seu clone. Avançamos e regredimos com a maior descontracção, alheios às perdas e aos custos. Investimos no aparato tecnológico mas não somos coerentes na capacitação e garantia de condições de estabilidade e enriquecimento profissional e humano aos Servidores do Estado. Perigosamente a experiência e os saberes específicos são desautorizados por assessorias politico-partidariamente ‘legitimadas’, mas imberbes e incultas desde o ponto de vista do Sentido de Estado e da Cultura Institucional. Promovemos a subserviência; incomoda-nos a palavra competente e franca. Poucos, muito poucos têm sido os Titulares Políticos que perceberam (e, percebendo, foram coerentes) a Administração como um Valor da Nação, um Património de todos. Tardamos a entender que, para um país pequeno, arquipelágico e dependente, uma das condições de resiliência é, tem de ser, precisamente a existência de uma Administração Pública com os pés bem fincados na terra.
11. Também por essa razão de há muito defendo o dever de relato por parte dos titulares de cargos políticos, particularmente dos Governantes. É salutar e fundamental submeter-se ao escrutínio público. Num país de recursos exíguos, é inaceitável que tais titulares entrem calados e saiam mudos. Importa saber ao que vieram e o que fizeram. Que ganhos a sua prestação significou para o país. A tal ‘accountability’! Bem sei que nas nossas ilhas existe uma indisponibilidade congénita para fazer balanço, para admitir falhas ou fazer ‘mea culpa’. Preferimos a fumaça do tudo está bem, do amanhã é outro dia. Volvidos quarenta e cinco anos, é legitimo e necessário avaliar a prestação dos Titulares. Tivemo-los já às largas dezenas. Qual o comprometimento de uns e outros com o bem comum? Que contributo trouxeram para a nobilitação do cargo e o engrandecimento do país? Que marcas deixaram? Que ensinamentos reter? Onde e como fazer melhor? Ou seja, o discurso de exaltação não deve ofuscar o sentido critico e a necessidade colectiva de superação e avanço nos próximos... 45 anos.
12. O desdobramento mais insidioso desse Medo é a sua utilização nas campanhas eleitorais para o condicionamento dos mais pobres, maxime, para a compra do seu voto. O despudorado aproveitamento da fragilidade alheia. Há seguramente uns dez anos escrevi contra isso. Continuo a entender que há uma profunda indignidade no fenómeno da compra de votos. Os fins são nobres também pelos meios para os alcançar. Na mesma linha, parece-me que a Juventude cabo-verdiana deveria ter como bandeira, neste marco dos 45 anos de Cabo Verde independente, o combate sem tréguas a essa prática que envergonha a nossa Democracia. Claro está que, antes disso, a Juventude terá de poder ver o país para lá dos coletes partidários... Outrossim, convém que este assunto seja igualmente atacado pelo ângulo dos Direitos Humanos, designadamente do incondicionado exercício de direitos fundamentais, e da consolidação do Estado de Direito Democrático.